“La vie Pour de Vrai” é a mais recente obra de Dany Boon, escrita, realizada e estrelada pelo próprio, que conta com um elenco emblemático reforçado pela presença de Charlotte Gainsbourg e Kad Merad.
Com estreia nos cinemas portugueses em julho deste ano, esta comédia francesa explora a dedicação de Tridan Lagache, interpretado por Boon/Gaël Raës, em reencontrar uma paixão de infância com quem conviveu durante cerca de oito dias no Club Med. Aos 50 anos, movido por um amor platónico que nunca desvaneceu, este está disposto a deixar tudo para trás com o objetivo de ir para Paris em busca de uma mulher cuja aparência desconhece. A única recordação que guarda, para além das memórias dos seus oito anos, é um desenho que ambos fizeram e que, durante cerca de quarenta e dois anos, estimou como o seu bem mais precioso.
Nascido e criado no club, Tridan tem uma personalidade diferente dos demais, algo que o torna único, mas quase irreal na sociedade em que nos enquadramos. Desde pequeno que a sua vida foi marcada pelo facto de não conseguir manter uma única amizade que durasse mais do que oito dias, período esse que corresponde ao tempo médio que as famílias passavam de férias. Este fator, que sempre lhe causou muita mágoa, acentuou-se quando conheceu Violette (Maybelle Billa Snodgrass/Valérie Crouzet). As duas crianças conectaram-se de imediato, o que tornou a sua vontade de fugir insaciável. Essas mesmas tentativas colidiram num final trágico para a sua família, assim como na partida da amiga, que nunca mais voltou a ver. Já adulto, Tridan decide aventurar-se pelo mundo fora, trocando o México por Paris, onde acaba por conhecer Louis (Kad Merad), o meio-irmão que até então não sabia que tinha.
Logo aí, as personalidades de ambos embatem. Louis é um motorista de Uber que está a passar por um processo de divórcio ao mesmo tempo que lida com a revolta do filho. Este habita no apartamento que em tempos fora do pai, pai esse que partilha com a personagem principal, que não passa de um espaço pouco caloroso e extremamente pequeno. No entanto, é tudo o que lhe resta. Apesar do seu ar taciturno, é um homem extremamente sozinho, que procura companhia em aplicações semelhantes ao Tinder numa tentativa de encontrar o mínimo de afeto. Como tal, foi lá que conheceu Roxane (Charlotte Gainsbourg), uma mulher igualmente solitária, mas assumidamente mais sensível, com quem partilha uma relação. Contra a sua vontade – e porque não conseguiu afastar o irmão com o seu mau feitio – Louis acaba por ceder à sua persistência, acolhendo-o temporariamente.
Tridan, por sua vez, é uma paz de alma que não vê maldade em ninguém, consumindo a pouca paciência da personagem de Merad com a sua alegria. A ingenuidade e o otimismo são características que lhe permitem ver o mundo de acordo com o seu estado de espírito, que se assemelha ao de uma criança, o que nem sempre joga a seu favor. A sua boa disposição é tanta que acaba por o desenquadrar da sociedade, tornando-o quase como um ser anormal aos olhos dos restantes. Devido à rapidez que o quotidiano nos centros urbanos exige, à falta de empatia, à falta de um olhar que não se limite apenas a ver, mas sim a observar e a assimilar o que nos rodeia, somos forçados a estranhar este tipo de comportamento. A felicidade relativa às mais pequenas coisas não é a norma, e como não a compreendemos, não a absorvemos.
A certa altura, assim que o propósito da presença de Tridan em Paris é revelado, Louis vê a oportunidade perfeita para se ver livre dele. Utilizando o seu par romântico como isco, ele consegue convencer o irmão – que só vê o que quer – que Roxane é sim a tão desejada Violette. Os eventos seguintes vão fugir rapidamente do seu controlo. A personagem de Charlotte fica extremamente movida pela devoção natural da personagem principal, algo com o qual não estava habituada a lidar, nem mesmo com Louis, deixando-se seduzir pela possibilidade de ter um futuro onde os sentimentos são realmente genuínos. Ainda que indiretamente, percebemos que, apesar de ser sociável e espontânea, Roxane sente-se quase invisível num mundo repleto de seres humanos que provavelmente partilham sentimentos semelhantes aos seus. A presença deste homem invulgar, que a trata com tanto carinho, alimenta a vontade de ter alguém que veja a transparência em si – mesmo que toda a relação seja em torno de uma mentira.
O conceito de solidão está tão presente que nos permite ver, através de todos os envolvidos, os diversos impactos que o tópico tem na vida de cada um. Todas as personagens são influenciadas pelo conceito, seja física ou espiritualmente, ou até mesmo ambas, sendo que o que as distingue é a forma como lidam com ele. Tanto a personagem principal como a sua mãe (Caroline Anglade/Aurore Clément) encontram-se literalmente sozinhos: Embora Tridan tenha vivido com Françoise até ir para Paris, a partir do momento em que o faz, ambos ficam fisicamente sós, uma vez que perdem a companhia um do outro. Ainda que viúva, e mesmo que o filho não tivesse construído uma amizade duradoura com ninguém, ela tinha-o por perto, o que acabava por compensar a perda do marido. Chegado a Paris, a personagem de Boon não permite que o facto de se sentir perdido inicie um ciclo dominado pela ansiedade, por isso vemos que, aparentemente, o radicalismo da mudança não teve um impacto tão negativo como o que poderíamos estar à espera. No entanto, o trauma do passado persegue-o. Conseguimos ver isso na sua incapacidade em entrar num autocarro, por exemplo, uma vez viaja para o passado sempre que vê um. Consequentemente, lembra-se do transporte de ida e volta dos hóspedes. Estamos perante dois pratos da balança: a esperança em conhecer alguém que permaneça e a crueldade em tirar as pessoas da sua vida com a mesma facilidade com que as trouxe. Até mesmo com estranhos que nunca tinha visto antes, as suas emoções falam mais alto, desfazendo-se em lágrimas sempre que os vê partir. Só apenas com a ajuda de Roxane o medo é enfrentado.
Louis, por sua vez, encontra-se física e psicologicamente sozinho. A sua profissão neste contexto revela-se bastante importante, uma vez que é um dos fatores que distingue o seu isolamento do de Roxane. Ao ser motorista, este está habituado a lidar com pessoas diariamente. Ainda assim, ignorando o seu feitio, as relações que estabelece com os passageiros – se houver comunicação de todo – não passam de pura cerimónia. Não há um espaço com colegas onde se possa interagir diariamente. Podemos comparar este processo à infância do irmão. Da mesma forma que um estava sempre a mudar de amigos, o outro, na vida adulta, está sempre a mudar de passageiros e não consegue criar qualquer laço. A presença de Tridan acaba por conquistar alguns dos clientes, mas no que diz respeito a qualquer proximidade, esta é inexistente. Roxane, por outro lado, ao trabalhar numa loja de roupa, tem uma profissão que envolve mais contacto, exigindo uma leitura certa da sensibilidade de cada um. Porém, tanto um como outro acabam por ficar extremamente sozinhos em determinadas alturas do dia – física e psicologicamente – então utilizam as aplicações como escape. Como consequência, também a felicidade de Tridan vai ser interiorizada de maneiras diferentes, colidindo num jogo emocional entre os agentes deste triângulo.
As reações e a maneira como vão lidar com esta nova presença só prova que as personagens não têm um registo exclusivamente humorístico. Gainsbourg, por exemplo, que estamos mais habituados a ver em papéis mais dramáticos, recebeu Roxane com uma naturalidade belíssima, incorporando de uma forma equilibrada o lado cómico com o teatral. O próprio realizador admitiu numa entrevista que tinha escrito o papel especialmente para ela, algo que pode explicar o vínculo que os três atores transportaram para o ecrã. Nessa mesma entrevista, Charlotte explicou que enviou uma mensagem a Boon a dizer que adoraria trabalhar com ele. Dany completou ao dizer que aproveitou a chance: “Eu ainda estava a escrever o filme e encaixou-se perfeitamente. Os planetas alinharam-se. Achei que a Charlotte seria a Roxane perfeita.”
Estamos perante um filme leve com uma personagem principal que corta com a aceleração que lidamos com frequência, adicionando cenários inegavelmente atraentes da cidade de Paris. A comédia em si não é carregada de cenas que nos façam rir à gargalhada, mas a química entre os atores acaba por esconder este detalhe. A inexperiência de Tridan é tal que chega quase a cair no ridículo, como o facto de não conseguir calçar sapatos fechados por ter estado sempre habituado a andar de chinelos. No entanto, podemos ver pelo seu comportamento, carregado de tanta bondade que até incomoda, que existe uma crítica à sociedade em geral através do exemplo parisiense.
Apesar de poder ser um pouco previsível, de ter o seu cliché, conseguimos encarar tudo isto como um calmante com uma mensagem importante na caixa: Não é tarde de mais. Não temos de fazer nem viver tudo aos dezoito ou aos vinte anos. As vidas mundanas também precisam de ser retratadas e não necessitam daquele plot twist que todos estamos à espera para continuarem a ter o seu sentido. São vidas diferentes, mas não menos válidas. A idade é só um número.