A memória do último filme de Jordan Peele, “Nós” (2019), era o que bastava para se esperar o pior do novo Bong Joon-ho. É que a luta de classes não se costuma dar muito bem com o tema do duplo – cuja remissão para o imaginário faz as delícias tanto de psicanalistas como de cineastas, é certo, mas à custa da revolução, à custa de uma alternativa materialista a esse circuito do fantasma e do ausente que parece culminar inevitavelmente na impotência, na hipnose. E não é preciso ser-se marxista ortodoxo para desconfiar destas representações mistificantes e querer partir o espelho: o próprio Freud, aliás, não hesita em ver na imagem do duplo uma expressão da castração do sujeito, uma duplicação que divide, uma inquietante regressão do Eu a um estado mental mais primitivo onde o mundo surgia regido por espíritos e magias. Portanto, serão aqueles que se deixam fascinar por este tema os primeiros a reconhecer que ele se opõe a uma potência de movimento, de revolução. O sinistro duplo apenas pode espantar, paralisar, mas o tempo não pára, e é obviamente inconcebível filmar a luta de classes deixando tudo como está – querer fazê-lo é já “resvalar” para um dos lados.
Ora, no filme de Jordan Peele, a coisa “resvala” depressa nesse acto final desastroso, que com um zoom out preguiçoso acaba por reduzir o campo social a um conjunto de famílias, todas elas de classe média e prontas a ser chacinadas. Nessa precipitação só se consegue o medíocre, o vago em vez do universal, e era justamente isso que temíamos ver repetido neste “Parasitas“, até porque as preocupações são genericamente as mesmas em matérias de classe, de identidade, de privacidade, e inclusive de arquitectura (em ambos os filmes há mais uma obsessão gótica pelo subterrâneo do que um simples gesto alegórico de espacialização da diferença de classe). Porém, é com grande alívio que constatamos que o filme de Bong Joon-ho se salva desde o primeiro minuto através de uma subtil fragmentação do conceito do duplo. À lengalenga do Eu e do Outro (e do Eu fantasmaticamente no Outro), Bong Joon-ho vai preferir uma interpenetração real, sem espectros, das duas categorias. E fá-lo com um duplo incorporado, mas nem por isso menos estranho: o parasita.
As cenas iniciais do seu filme anunciam de imediato a parasitagem como modo de existência: o rapaz que tenta aceder ao wi-fi dos vizinhos é o mesmo que depois assume o cargo de explicador ao absorver a reputação de um amigo… E a situação, cedo percebemos, é generalizada, ou pelo menos generalizável: também vemos um casal rico parasitar os talentos de quatro indivíduos sob uma fachada de gratidão e simpatia suburbana. Neste universo, tanto os pobres como os ricos parecem existir à espreita, eternamente pousados na folha de um arbusto à espera que a presa passe, à espera de conseguir a dita “cunha” ou de arranjar o empregado ideal. Não se deve, pois, distinguir vampiros burgueses de entre os parasitas – o que há aqui são pulgas mais ou menos cheias de sangue.
E é ainda de duplos que falamos, claro, porque um continua desprovido de essência positiva (o parasita), e existe unicamente em relação ao outro (o corpo parasitado). Mas tudo começa a avariar quando se incorpora o parasita, quando o exterior é interiorizado, quando se sente o cheiro “a gente que anda de metro” dentro da casa dos que têm motorista privado. A primeira vítima de tal avaria é o sentimentalismo burguês, impossível nesta intimidade profanada pelo social e pelo político, nesta sala de estar que já não é de telenovela, mas de telejornal. Daí que o tom cómico optado por Bong Joon-ho seja, mais do que adequado, necessário. A segunda vítima é a metáfora (this is so metaphorical! – ouve-se mais do que uma vez no filme), que pressupõe relações de significação completamente alheias à brutal literalidade do filme: a imagem dos pobres na cave é tão forte que não pede para ser decifrada. À medida que nos aproximamos do desfecho da narrativa, as coisas só se tornam ainda mais nítidas, ofuscantes.
O último terço do filme é aquele em que a dívida infinita – o não-dito desta parasitagem generalizada – se torna incomportável e explode. Os parasitas subitamente revelados como devedores são, como seria de esperar, conduzidos a um ajuste de contas. É aqui que fraqueja a criatividade de Bong Joon-ho, que não resiste à tentação de parasitar o pathos das suas personagens, sugar os seus sonhos e lágrimas juntamente com o sangue. O reptiliano Chabrol d’ “A Cerimónia” (1995) não teria cedido a essa vontade de “fazer bonito”, “fazer catártico”, tal como não teria sentido a necessidade de resolver a luta de classes via epílogo (resolução que em “Parasitas” esconde mal uma certa resignação pós-moderna). No entanto, até chegarmos a esse ponto, não vemos como poderemos fugir do filme, e nesse sentido, nesse cerco cerrado, estamos a anos-luz da ligeireza de um “Snowpiercer” (2013): desta vez a provocação política de Bong Joon-ho provoca verdadeiramente alguma coisa, nem que seja um riso nervoso.
Com “Parasitas”, o cineasta sul-coreano descobriu efectivamente que a ficção do duplo é ainda assim preferível à do uno, sendo a parasitagem, a existência em anexo, uma realidade do corpo – e contam-se pelos dedos os cineastas contemporâneos (Lynch?, Petzold?…) que se sentem à vontade com esta descoberta.