“Petite Maman – Mamã Pequenina” – Os Espelhos de Sciamma

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O triunfo fulgurante de Céline Sciamma com o seu bem-sucedido “Retrato da Rapariga Em Chamas” gerou inúmeras expectativas quanto ao que a realizadora poderia vir a fazer depois de atingir uma desejável unanimidade junto da crítica e do público.

A pandemia viria a retirar alguma dessa tensão do ar e Sciamma acabaria a colocar em prática um pequeno filme, no sentido literal – já a sua duração vai pouco aquém dos 70 minutos – que era uma ideia germinada nos tempos de “A Minha Vida de Courgette”, de que escreveu o guião.

Recorrendo a recursos físicos e técnicos muito mais escassos e menos vistosas, a realizadora trouxe à vida um projecto que sentiu que o mundo precisava de ver agora, depois do turbilhão – outras convulsões se seguem ou seguirão, mas não estavam no campo de visão da altura.

A história é simples e versa sobre a experiência de perda que Nelly (Joséphine Sanz) sofre com a morte da avó. Logicamente, a sua própria mãe, encontra-se confrontada com a mesma perda, mas o filme não está centrado no mundo dos adultos, por isso encontra-se relegada para segundo plano.

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Nelly com a mãe

Sintomaticamente, os adultos não têm nome no mundo da “Mamã Pequenina” e isso é dizer muito sobre o seu anonimato, sobre a sua ausência e sobre a sua pouca importância para o mundo das crianças do filme.

Nelly irá viajar com os pais até à casa da avó a pretexto de que seja feita a limpeza e empacotamento de todo o seu recheio e nesse contexto muitos serão os fantasmas que se sentirão agitados por esta invasão.

A casa da avó no presente mostra-se como uma habitação fantasma, de móveis cobertos por lençóis brancos, repleta de passado e arrependimentos, um certo imobilismo e muitas perguntas sem resposta. É uma casa morta que anseia pela vida.

Esta viagem é delicada desde o início e tornar palpável a delicadeza em imagens é trabalho da colaboradora de Céline Sciamma em “Retrato de uma Rapariga em Chamas”, a directora de fotografia Claire Mathon, envolvida também no mais recente filme de Pablo Larraín, “Spencer”.

A mão de Mathon é pautada por uma familiar melancolia ausente e magoada transposta para planos de adultos de costas para a câmara e olhos postos na imensidão do horizonte, perdidos no esquecimento das suas vidas.

Petite-Maman-mama-pequenina A mãe de Nelly
A mãe de Nelly

Esse tom acaba por dispersar-se nos momentos em que as crianças entram em cena, numa fotografia mais desperta, atenta, e sintonizada com os elementos naturais, a lembrar aqueles filmes caseiros feitos nos anos 80/90.

O ponto de vista principal é, facto, o de Nelly e Marion (Gabrielle Sanz), as duas meninas que, na vida real, são irmãs nascidas no mesmo dia, como Céline Sciamma sempre relembra ser assim que os gémeos gostam de ser chamados.

É um ponto de vista das crianças, mas não infantilizado, tratando a infância com uma inocência enganadora, num filme aparentemente tão simples que corre o risco de passar despercebido – não fosse tão inteligente e profundo.

Sciamma correu esse risco simplesmente por não estar interessada em nada mais que a verdade e este “Mamã Pequenina” está intimamente ligado à sua própria história de infância, filmado que foi na sua terra natal e captando temas importantes para a realizadora.

Mamã Pequenina” é um filme-terapia antes da terapia, com uma surpreendente ideia de existência através de duplos, de mundos desdobrados em que facilmente o presente coabita com o passado a tentar resolver as contendas que ficaram por selar, recuperando oportunidades perdidas.

Se parece simples, “Mamã Pequenina” engana alegremente o seu espectador, remetendo-o para uma arqueologia dos sentimentos que tem mais impacto na escuridão do cinema e nos momentos de solidão em que se pode encontrar frente a frente apenas consigo mesmo.

Mamã Pequenina” quer sentar no divã quem estiver disposto a isso e confrontá-lo com as perguntas de que se arrepende nunca ter feito ou de ter perdido o momento certo para as fazer.

Uma casa que não é só uma casa, é um lugar de memórias – às vezes, não se pinta por cima do velho papel de parede, mas um dia ele acaba por reaparecer, como um trauma, uma pergunta por responder, uma memória desagradável, uma ausência.

Se a ingenuidade alegre de Nelly e Marion apontam para uma realidade em que se resolve tudo a perguntar e entender, são muitos os momentos em que a vida dos adultos parece corromper essa doçura, relembrando com dureza que todos já foram pequenos, mas que necessariamente se complexificaram.

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Nelly e Marion preparam chocolate quente

Nelly olha com reverência para os pais que se abraçam timidamente, contente por vê-los juntos, mas na perspectiva do casal o abraço parece um adeus ou o tímido cumprimento de um casal divorciado que mantém um nível aceitável de amizade social.

Por isso, quando Nelly encontra a mãe na sua versão não-crescida, fá-lo em terreno neutro, com tempo para ouvir com atenção e para fazer as perguntas que a mãe do futuro parece incapaz de compreender – talvez por nunca estar presente.

A história é, por isso, despida de todos os artifícios para que apenas se ouça o essencial, sem a distracção da banda-sonora, e em que quase todos os “grandes sons” são os do mundo natural, intocado ou tocado apenas pela fantasiosa imaginação das crianças.

A frontalidade com que Nelly e Marion encaram temas difíceis é, por vezes, assombrosa e são muitas as vezes em que os adultos as subestimam ou não consideram as suas preocupações como importantes.

Quando Nelly encontra Marion, quer conhecer e ajudar a reconstruir a casa na floresta que a mãe nunca encontrou tempo para lhe mostrar. Inadvertidamente, encontrará a versão jovem da mãe e com ela estabelecerá uma ligação impossível de estabelecer com a versão actual.

Nesse mundo de brincadeira, as fronteiras temporais não existem e as barreiras da linguagem e dos sentimentos ainda não foram levantadas e, por isso, Nelly pode ficar a saber que não é culpada da depressão da mãe ou que é uma filha desejada.

É na fantasia que poderá finalmente dizer adeus à avó como não conseguiu fazer antes da sua morte, numa espécie de resolução através do escapismo saudável, para que o que vem a seguir não fique comprometido.

Em “Petite Maman – Mamã Pequenina”, Sciamma aponta o espelho ao espectador, tornando um pequeno filme numa enorme experiência que não se detém na tela, se assim o espectador o quiser.

Muito está na sua mão e parte de si aceitar ou não a tarefa que a realizadora lhe propõe. Desse ponto de vista, “Petite Maman – Mamã Pequenina” tanto pode ser visto como uma experiência transcendente como um fio de aborrecimento plano.

No final, quando todas as gavetas, todos os recantos, todas as recordações são arrumadas nos sítios próprios, Nelly já se despediu tanto da avó como da mãe pequenina como de uma versão de si mesma que não mais existe.

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Nelly e Marion

Se dúvidas houver na relação que o filme intimamente estabelece com a vida e a morte, reais e metafóricas, pelo menos que se lhe conceda o benefício da dúvida para que possa ser visto sem o véu da melancolia adulta – as possibilidades são tantas quantos os espectadores.

Petite Maman – Mamã Pequenina” carrega consigo o elemento que decide se um filme é importante ou não: fica com quem o vê, muda, cresce, traz novas perspectivas a cada dia, não se limita ao momento de ser visto, como se fosse orgânico, e isso é não só raro como incrivelmente difícil de conseguir. Uma pérola!

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“Petite Maman – Mamã Pequenina” – Os Espelhos de Sciamma
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