“Rodeo”, o filme sensação da realizadora francesa Lola Quivoron, funciona um pouco como colar o ouvido a um búzio e distinguir o mar, mas há quem não consiga ouvi-lo, muito simplesmente. Quando esse clique se dá, “Rodeo” faz muito sentido, mas se não, é apenas um filme sobre corridas de moto com uma rapariga revoltada lá no meio.
O frenético filme de corridas de moto que muito se assemelham a passerelles onde se exibem as máquinas, as acrobacias e as penas coloridas, é a longa metragem de ficção em que se estreia Quivoron e também a estreia de Julie Ledru no cinema como Julia – ela que praticava apenas motocross na vida real.
Numa primeira nota, torna-se impressionante saber que Julie não é atriz profissional, porque “Rodeo” respira sobretudo devido ao seu enorme talento e no modo seguro como agarra por completo a tela com o seu magnetismo cru.
Para se tornar Julia, contudo, Julie trabalhou imenso juntamente com a realizadora e os outros atores principais, sobretudo com Antonia Buresi, com quem Lola Quivoron escreveu o argumento e com quem partilha a vida fora das telas.
Se a história de “Rodeo” gira em torno de um grupo de motociclistas que se movimenta nas margens da sociedade, Julia representa, nesse contexto, uma margem à margem da margem e para subir de escalão terá de ganhar a confiança de um grupo fechado de homens jovens muito renitentes em receber no seu seio uma mulher.
Julia força a sua entrada naquele mundo, ela que vive fascinada pela velocidade, mas, acima de tudo, pela capacidade que as máquinas lhe conferem em tentar escapar do seu eterno descontentamento, antes que perceba que onde quer que chegue o seu descontentamento também lá estará.
Sem raízes nem ambiente familiar estável, Julia vai procurar naquele grupo de homens a casa que nunca teve e embora parcialmente a encontre, terá de conseguir quebrar todas as regras e regulamentos implícitos de um grupo que, embora marginal, não deixa de ser homogeneamente composto por homens.
“Rodeo” é absolutamente honesto e direto naquilo que procura mostrar, mesmo que a sua protagonista seja uma mentirosa patológica, muito por força das circunstâncias. Por isso, tudo nele é áspero, desde a fotografia de Raphaël Vandenbussche, à banda sonora original da autoria do produtor dominicano Kelman Duran, passando pela linguagem.
Julia é, para além de mulher, alguém que alimenta uma personalidade difícil, confrontativa, dura, revoltada, sem paciência para rodeios. Raramente se lhe descobre um sorriso, talvez apenas quando sobe para a sua máquina devoradora de asfalto. Julia é, ainda, uma mulher mestiça, com origem na República Dominicana e, por isso, se dúvidas houvesse quanto à natureza miscigenada e complexa de “Rodeo”, esta é a primeira pista a seguir para encontrar as restantes que o confirmarão.
O facto de em nenhum momento qualquer dos seus personagens encontrar um final feliz pode gerar frustração e criar um sentimento de que o filme não chega a atingir o seu zénite, mas, no fundo, é composto por vários zénites que são apenas pequenos momentos de bela sintonia entre seres humanos.
“Rodeo” desfoca-se ainda constantemente para as margens, poucas vezes os seus personagens se encontram com pessoas de outros contextos, o espetador não chega a vê-los quase por completo, embora esporadicamente os possa ouvir.
O mundo de “Rodeo” é uma bolha onde ninguém entra de ânimo leve, corresponde a um contínuo ritual de passagem e pode julgar-se, do mesmo modo, que quem entra já não sai de verdade. Em última instância, põe-se em causa que este mundo seja até real e que tudo não passe apenas da imaginação das suas autoras.
Pelo fogo se purificam todas as almas, na fogueira se expurgam os fantasmas, dança-se energica e selvaticamente entre iguais, humanos que se transformam naquilo que as suas mentes expandidas permitem, bruxas e carrascos de mãos dadas até ao momento em que as bruxas têm de partir porque o mundo ainda pertence apenas aos carrascos.
No ritual de passagem de Julia, cabem todos os rituais de passagem que os homens têm inventado desde que conquistaram a postura ereta e o polegar oponível, mas esses rituais não foram construídos para ela, mesmo que a eles ache que tenha ganho direito.
“Rodeo” é, claro, um filme também sobre os lugares que as mulheres ainda têm de conquistar à força, embora não se possa dizer que é unica e exclusivamente um trabalho de tonalidades feministas, uma vez que parte mais de uma reflexão do que um trabalho de transformação deliberado do contexto social.
Esta é uma estreia auspiciosa carregada de simbolismo e carga energética, mas é o retrato de gentes, homens e mulheres, duros por fora e secretamente em busca da ligação emocional perdida. Brevemente, Julia consegue ligar-se a Kaïs ou a Ophélie (a mulher de Domino, o patrão do grupo que se encontra na prisão) ou ao seu filho e sabe-se de imediato que a raiva é apenas um mecanismo de defesa.
“Rodeo” é uma montanha russa de acontecimentos em catadupa, intensos, bem vividos, onde o passado é desconhecido, o futuro pode nem chegar e o presente é aquela pancada de adrenalina que se injeta no corpo quando se acelera a moto preferida, se toca na mão quente de alguém de que se gosta, se abraça a felicidade do outro ou se abre fecha os olhos para sentir o vento na cara.
O segredo de “Rodeo” são mesmo as coisas pequenas e fugazes e Julia é o perfeito exemplo disso: um fogo, uma revolução em forma de mulher, de cabelo solto, ondulado, selvagem, que anuncia o formato que o futuro tomará, mas se queima tão depressa quanto a raiva que a consome de dentro para fora.