A 77.ª edição do maior festival de cinema do mundo chegou ao seu fim, apresentando uma seleção de filmes que, apesar de promissores no papel, se revelaram grandes decepções no ecrã. No entanto, algumas destas obras conseguiram se destacar no meio duma safra pouco inspiradora, onde as novatas e os nem tão novatos assim, foram os que ditaram uma espécie de nova ordem.
Numa época em que os grandes festivais se mostraram preocupados com os seus “temas” e, por consequência, com as políticas de identidade, os filmes do concurso principal foram os que mais sofreram. A maioria vieram empacotados em “mensagens” lustrosas que pareciam querer dialogar com o espectador só que de uma forma que expôs um caráter mais performativo.
Cannes 2024 foi, também, uma edição marcada pela presença de grandes nomes, verdadeiros dinossauros de um cinema de outra época, e que agora precisaram de lutar para encontrar o seu lugar ao sol num panorama atual que parece não ter mais espaço para eles. Parece que foi há muito tempo, mas passou-se apenas uma semana desde que testemunhamos a megalomaníaca e caótica viagem de “Megalópolis”, realizada por Francis Ford Coppola. Um filme que sem dúvida foi o grande acontecimento do festival, e que apresentou um Adam Driver a declamar Shakespeare de forma destrambelhada, enquanto fazia alusões ao totalitarismo e ao império romano. Foi um desastre de proporções épicas e que talvez o tempo lhe fará a devida justiça, ajudando-nos a (re) descobrir, e a compreender uma espécie de obra-prima incompreendida.
Depois tivemos Paul Schrader, que trouxe “Oh, Canada” à Croisette, um filme realizado às pressas em apenas 19 dias onde um Richard Gere, como que a fazer de alter ego de Schrader, interpreta um realizador de sucesso a fazer contas à vida e a expôr os segredos que nunca contou nem à esposa. Foi um outro falhanço, do homem que um dia nos deu “Táxi Driver” e “Gigolô Americano”, e de um momento que parece evidenciar um sintoma dos tempos, onde os cânones e as autoridades intelectuais são cada vez mais escrutinadas, e rejeitadas, em favor de uma nova geração mais consciente das suas dores e anseios.
E por fim, a fechar o ciclo dos “dinossauros” do cinema anglosaxónico, tivemos David Cronenberg e o seu “The Shrouds”, filme que nos apresentava ao seu alter-ego interpretado por Vincent Cassel, um homem que “construiu uma carreira em cima de corpos”.
Assim como Schrader, o canadiano faz uma introspecção sobre a sua vida e carreira, mas num retorno que se deu através de um filme estranho e datado, que foi buscar na inteligência artificial e em teorias conspiratórias, os seus temas para falar do próprio luto, quando perdeu a esposa em 2017. Pelo meio, o realizador aproveitou para dar continuidade às frequentes questões do “body horror”, género que um dia já foi seu mas que agora parece ter aprisionado o seu cinema.

Recordemos também do primeiro filme que abriu a competição, a tocante estreia da francesa Agathe Reidinger, “Diamant Brut”, filme que seguia uma jovem de 19 anos na sua busca desesperada por significado, através da fama, juventude e beleza. Acompanhamos a jornada angustiante da protagonista enquanto ela perseguia a fama, motivada por um desejo desesperador de participar num reality show, ao mesmo tempo que lidava com as consequências de um trauma geracional e uma relação tóxica com a mãe.
As relações tóxicas entre familiares também esteve presente em vários outros filmes nestas últimas duas semanas. Teve o lindíssimo filme da britânica Andrea Arnold “Bird” que era contado do ponto de vista de uma menina negra de 12 anos vivendo com o pai branco e de comportamento errático. Um impressionante feito de Arnold, que conseguiu fundir a ficção com algo entre o realismo mágico e o documentário.
Depois, como é comum em qualquer festival que se preze, tivemos o cinema do choque. “The Substance” o improvável sucesso da francesa Coralie Fargeat, com uma Demi Moore que renasce das cinzas num papel feito à medida para ela. Aqui a realizadora recria uma sátira de terror sobre etarismo e sobre os padrões de beleza impostos às mulheres na indústria cinematográfica (e não só) enquanto atualiza o “body horror” de Cronenberg e homenageia as suas múltiplas referências cinematográficas. Foi o filme sensação do festival e que, quatro dias depois, perdeu o seu posto para o negrume do iraniano “The Seed of the Sacred Fig” de Mohammad Rasoulof, que já chegou a Cannes envolto em um contexto político que era indissociável da sua própria narrativa.

E por fim, chegamos ao grande filme de Cannes 2024. A comédia melancólica do americano Sean Baker, “Anora” sobre uma prostituta interpretada por Mikey Madison que, no espaço de uma semana, vive o sonho americano através de um conto de Cinderela, para logo depois ser esmagada sem piedade por ele; um choque de realidade capitalista que tanto tem de hilário como também de devastador. É o quarto filme do realizador em que trabalhadoras do sexo tomam o protagonismo, desestigmatizando-as no imaginário cultural, e conferindo-lhes uma dignidade que é de uma sensibilidade impressionante, sem jamais retratá-las como vítimas.
Baker entrou no nosso radar com “Tangerine” o tal filme rodado num iPhone e que chamou a atenção menos pelo seu feito artístico que pelas suas habilidades técnicas e uma certa carta de intenções. Desde então, o realizador tem construído um belo catálogo, que sempre distinguiu-se por uma plástica visual muito distinta que combina não-atores e locações reais, adicionando uma camada extra de um realismo sincero e visceral.
O fabuloso “Anora” parece dar continuidade a essa tradição, explorando a complexidade de uma personagem multifacetada, revelando não apenas suas dificuldades, mas também suas aspirações e sua humanidade, num filme onde o humor e a tragédia colidem-se de forma complexa mas também acessível.
Num festival onde os temas políticos de um presente muito próximo parecem não conseguir dividir espaço com qualquer coisa que fuja desse espectro narrativo, parece improvável que este filme grandioso sobre uma prostituta à deriva saia de Cannes com algum prémio em mãos. Por outro lado, numa edição onde as histórias de mulheres tomaram conta do discurso e se destacaram por métodos de emancipação que vão além do estereótipo do “girl boss” que parece dominar o cinema atual, “Anora” se sobressai como o que melhor se fez nos últimos anos – ainda que, ironicamente, é realizado por um homem.
O resultado do que ficará de Cannes em 2024, saberemos logo mais a noite, e independentemente do resultado, Sean Baker certamente se posicionará como um forte candidato a deixar uma marca duradoura nas nossas memórias.