“Soldado Nobre” é a primeira aventura de Jorge Vaz Gomes pela longa metragem, partindo da descoberta de uma fotografia onde está representado Francisco Nobre, o bisavô do realizador.
Este é o ponto de partida para uma longa viagem de pesquisa, busca por pistas e o regresso às origens da família, o regresso a Alfaiates, a aldeia do Sabugal de onde o soldado Nobre partiu para lutar nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.
O Cinema Sétima Arte esteve à conversa com o realizador para perceber melhor o que significa a concretização desta obra tanto para o próprio, como experiência pessoal, como no contexto da comunidade e mesmo da preservação da memória que paulatinamente tende a desaparecer à medida que as pessoas mais velhas também desaparecem.
Sobre a motivação ou motivações que impulsionaram a busca pelo passado que representa o documentário “Soldado Nobre”, Jorge Vaz Gomes confessa: Desde cedo que tenho uma obsessão particular pelo passado e pela história. A verdade é que o passado representa quase toda a nossa experiência do real, seja o passado próximo ou distante, e como tal as ferramentas que temos para o pensar, tornam-se essenciais para percebermos a vida. No entanto, não me interessa apenas a história e a leitura do passado vista pelo ângulo dos grandes eventos, grandes personagens e pelos livros de história da chamada historiografia mais clássica. Interessa-me a microhistória, a história vista de baixo, a questão da memória, o passado dos indivíduos que não têm espaço nas grandes narrativas. Ao mesmo tempo interessa-me bastante a minha história familiar, sobretudo aquela que está tão longe que pouco consigo almejar conhecer, mas que ainda assim consigo obter uns fragmentos arrancados à força ao passado. O Soldado Nobre acaba por juntar essas duas obsessões, o passado e os antepassados.
Nesta sua primeira longa metragem, um momento importante e marcante da carreira, estão integradas partes do percurso como realizador e ator, mas também razões pessoais que ditam a escolha do tema de “Soldado Nobre”. Jorge Vaz Gomes confirma que é um momento importante sem dúvida. Trabalho há praticamente 20 anos no audiovisual, e o objectivo sempre foi um dia fazer longas-metragens. No entanto foi preciso chegar aos 42 anos para conseguir estrear a primeira longa. Fiz bastantes curtas-metragens na última década, e o Soldado Nobre também estava destinada a ser uma curta, mas felizmente a equipa da Kintop Filmes achou que a ideia para o filme tinha solidez para ir mais longe, e com a procura de financiamento e eventual apoio do ICA à finalização, foi o que acabámos por fazer. A ideia surgiu porque à medida que se aproximava o centenário da primeira guerra mundial, eu não parava de pensar no facto de ter tido um bisavô que lutou nas famosas trincheiras, e no facto de que podia ser interessante fazer um filme sobre ele, ou sobre a tentativa de saber mais sobre ele. Como conto no início do filme, quando tentei arranjar uma fotografia dele, que eu achava essencial para se poder fazer um filme sobre o meu bisavô, deparei com a inexistência de qualquer imagem, tirando uma fotografia de grupo que circulava na aldeia, onde ele estaria mas que ninguém o saberia identificar. O que começou por ser um obstáculo, rapidamente percebi que podia transformar-se no centro do filme: aquela fotografia de grupo, um pedaço de papel tão frágil que sobreviveu 100 anos para nos contar algo sobre aquela altura e sobre aquelas pessoas e aquela época.
Para chegar ao seu objetivo principal, contudo, teria pela frente um longo caminho de pesquisa tanto documental como de recolha de informação perto das pessoas que ainda detinham memórias da época ou retinham testemunhos passados por familiares ou conhecidos vivos na mesma época que Francisco Nobre. Em relação à cronologia dedicada ao projeto, o realizador esclarece: as primeiras filmagens penso que foram no Outono de 2013, e as últimas no final de 2019, pouco antes da pandemia aparecer. As filmagens iam sendo feitas ao longo dos anos, à medida que as ideias e as descobertas apareciam, nunca foram concentradas no tempo. Saía para o terreno à medida que tinha algo para filmar ou entrevistas para fazer. Filmei muitas vezes sozinho, mas tive por exemplo uma grande ajuda do meu director de som, o Jorge Cabanelas Pereira, que se ofereceu para vir muitas vezes comigo filmar. A pesquisa documental, arquivos, bibliotecas etc. acabou por durar uns cincos anos. E depois de ter o guião fechado ainda voltei a filmar algumas semanas para dar mais consistência visual ao filme. As cenas com a roupa do soldado, por exemplo, foram feitas já no final, com o guião fechado.
O realizador representa em “Soldado Nobre” não só o papel de timoneiro do projeto, mas intervém ainda como ator, em momentos ficcionados que vão contrabalançando com os de documentário. Jorge surge representando o papel de soldado e justifica-o referindo que o filme precisava de uma textura que não fosse unicamente documental, com o dispositivo clássico de entrevistas, imagens e documentos. Precisava de algo que criasse um ambiente que está relacionado precisamente com o sentimento de que o passado é um chão misterioso que se desvanece à medida que o deixamos para trás. Aquele soldado ficcional está lá um pouco por causa disso, não para recriar momentos do passado, mas mais para criar um pouco de uma experiência que se parece a uma espécie de sonho sobre aquele passado.
Quanto à opção por um narrador interveniente que se coloca diretamente no lugar do outro, mesmo sendo o outro alguém que lhe é próximo, substituindo-se-lhe intencionalmente e criando-lhe uma narrativa paralela, o realizador justifica-o: Penso que não faria sentido criar um narrador com um ponto de vista ausente e objectivo, tratando-se de, apesar de a distância ao passado, uma história pessoal e com ligações muito fortes à forma como se desenvolveu a história da minha família no séc. XX. E também porque no fundo é esse ponto de vista pessoal que acaba por permitir o filme. Qualquer outra pessoa nunca teria tido interesse em tentar descobrir quem era Francisco Nobre naquela fotografia, seria apenas um soldado esquecido como tantos outros.
Uma grande parte do processo primário de desenhar o percurso de Francisco Nobre são as perguntas a descendentes de outros soldados, pessoas da terra, familiares seus que ainda têm memórias da época. Nesse contexto, a oralidade na construção da memória assume grande importância, especialmente quando os outros suportes são tão parcos, e Jorge confessa: foi um dos vectores ou pulsões que me motivaram a fazer este filme. E fica a sensação frustrante de ter deixado muitas entrevistas de fora da montagem final, e de não ter feito muitas mais entrevistas, pois são ainda muitas as memórias daquela guerra que existem na cabeça dos descendentes de soldados. É um legado de memória que vai desaparecer um dia, e só vai sobrar o que está nos livros de história.
Para lá do filme, Jorge Vaz Gomes acabou por ter um papel importante também no contexto das comemorações do centenário da participação portuguesa na Grande Guerra 1914-1918 e é convidado para ir a França para participar do evento promovido pela Associação Memória Viva. O realizador refere mesmo que o filme ganhou um novo fôlego nessa altura, quando fui a França filmar as zonas onde o meu bisavô combateu e as celebrações dos 100 anos da Batalha de La Lys. A razão para ter sido convidado pela Associação Memória Viva é porque nessa altura tinha uma versão curta-metragem do filme, que não tinha sido mostrada em lado nenhum. Eles organizaram um fim-de-semana relacionado com aquele evento histórico, onde entre outras actividades eu mostrei essa versão curta do filme. Acabou por ser a única exibição pública dessa versão curta porque percebi logo que estava a filmar material nessa semana que me ia permitir fazer uma nova versão do filme.
Para além da importância da história do seu bisavô, única e pessoal, “Soldado Nobre” acaba por representar um marcante trabalho de exposição das condições de vida dos homens da época. O próprio Francisco Nobre alista-se por necessidades várias, por exemplo: Sim, é muito óbvio que a única razão porque era possível tratar homens daquela forma na guerra, era porque em tempos de paz não estavam habituados a viver muito melhor. Ainda assim, os casos de insubordinação e de insubmissão grassavam e estão amplamente documentados nos arquivos, tal como aquele em que participou o meu bisavô e que aparece no filme. Portanto mesmo para homens que viviam na pobreza e com dificuldades, as condições de vida na guerra e nas trincheiras, alimentação, insalubridade, saúde, eram um novo baixo para todos eles. O Francisco Nobre teve uma particularidade curiosa, utilizou o facto de ser órfão e sem meios de subsistência para conseguir ser aceite no exército. O funcionário que estava a ajudar-me a ver o processo dele em arquivo, ao início até achava que ele tinha utilizado essa condição para não ter de ir à tropa, quando foi precisamente o contrário! Mal imaginava Francisco Nobre que passados poucos meses Portugal declarava guerra à Alemanha e a vida dele ia mudar para sempre. É um dos daqueles momentos em que grande história caminha que nem um bulldozer sem misericórdia sobre as vidas de formiga dos indivíduos.
Há um momento em “Soldado Nobre” em que depois de o padre homenagear os soldados na missa do 1º de novembro, o Jorge refere que o seu bisavô não morreu na guerra, mas é como se tivesse morrido, numa alusão à vida difícil que teve no seu regresso a Portugal depois da guerra: sim, de alguma forma a vida daqueles homens mudou para sempre depois daquela guerra, e mudou para pior, mesmo para os que sobreviveram. O meu bisavô foi gaseado e teve problemas graves de pulmões que acabariam por lhe provocar a morte passados poucos anos, em 1923.
“Soldade Nobre” representa ainda uma importante reflexão no que diz respeito à inexistência de registos escritos ou até fotográficos recolhidos diretamente das fontes mais próximas: naquela altura ninguém tirava fotografias e escreviam-se poucas cartas, e as que se tiravam perdiam-se com o tempo. É um milagre absoluto ter havido um soldado que enviou uma fotografia para a família, e essa fotografia ter durado até aos dias de hoje.
Por isso é surpreendente que surjam sumariamente imagens em Super 8 no documentário e as próprias apontam para o contacto da família do realizador com o exterior e, por isso, Jorge esclarece: Quando a minha família emigrou para França nos anos 60, um tio meu comprou uma câmara de super8, e foi ele que filmou a minha bisavó Leonor Lapas, a viúva do soldado Francisco Nobre, poucos anos antes de ela morrer na década de 70.
Ao mesmo tempo que o filme se depara com grandes lacunas nas fontes documentais, há, simultaneamente, um sentimento de responsabilidade na construção da História de família para que as gerações vindouras possam saber um pouco mais do que se sabia até agora: Sim, já tinha pensado nisso, espero que no futuro haja descendentes da minha família que encontrem este filme e sintam essa satisfação de ver um pouco do passado familiar esclarecido.
Apesar do micro contexto ou da micro-história, perpassa em “Soldado Nobre” um desejo de refletir sobre o significado e mesmo estabelecer o paralelo entre a História individual de cada homem e a História feita de grandes momentos. Há uma passagem muito interessante sobre o papel do retrato ao longo da História, numa visita de Jorge a um museu aquando da viagem a França. Ali, o retrato antigo é um recurso típico das elites e o realizador assume: tem a ver com, como digo na narração desse segmento, com o meu espanto com a obsessão intemporal com o retrato de que eu próprio padeço ao longo do filme. Da mesma forma que me questiono porque era tão importante para as figuras de poder da história ocidental se fazerem retratar, questiono-me porque raio é tão importante para mim descobrir quem ele é naquela fotografia, e que diferença fará realmente quando/se descobrir quem ele é. Que diferença fará realmente a cara de uma pessoa e sua representação? Todos os rostos são ininteligíveis ou nem por isso? Não tenho resposta ainda.
Há, pois, um significado muito mais abrangente em “Soldado Nobre” que se prende precisamente com a desfocagem do contexto individual para se focar nos acontecimentos maiores, os que compõem os livros de História. Considerando que História é construída sobretudo por esses grandes acontecimentos, Jorge concorda que o seu documentário é o reflexo da democratização do acesso aos meios e da democratização da própria História, mas ressalva: Sem dúvida. Embora eu não queira de todo inscrever o meu filme ou o meu trabalho numa lógica de escrita da História ou como exercício de historiografia. O que me interessa mesmo é tentar iluminar um pouco do passado, o que pode ser feito ao arrepio das restrições formais e científicas de uma disciplina como a história.
Assim, o trabalho de Jorge Vaz Gomes não está necessariamente ancorado no modo clássico de fazer História, embora ela aqui tenha um papel importante, apenas não no sentido totalmente científico ou dos métodos científicos do modo de refletir a História enquanto ciência. Por isso, o realizador admite que o seu “Soldado Nobre” não bebe da fonte da Nova História e da Escola dos Annales e avança: Eu se tivesse que escolher uma corrente do pensamento historiográfico que me inspira e ao meu trabalho, escolheria a mais recente escola da Microhistória, criada pelos italianos Giovanni Levi e Carlo Ginzburg. A Escola dos Annales, embora transformadora do ponto de vista ontológico, e não sendo eu historiador nem tendo formação nessa área, dá-me impressão que ainda operava muito numa escala macro, ao contrário da microhistória que começou a estudar a vida de indivíduos muito concretos, e a perceber as transformações sociais e históricas a partir de um ponto de vista de baixo. É uma corrente que tenho estudado muito como inspiração formal para este tipo de filmes sobre o passado dos indivíduos, no seio da tese de doutoramento que ando a escrever, e que acompanha o meu próximo filme que é sobre a vida da minha Tia Cecília Vaz, que aparece no inicio do Soldado Nobre, e que foi uma das primeiras portuguesas a emigrar para França no inicio da grande vaga de emigração dos anos 60. Ainda que, insisto, não advogo para estes filmes o estatuto de obras historiográficas, embora exista uma aproximação formal muito interessante com o modo de fazer microhistória.
O Cinema Sétima Arte quis ainda saber como é que o realizador vê o seu percurso na realização de ora em diante, e se, tendo em conta o seu trabalho anterior com as curtas metragens, se identifica mais com o trabalho numa longa metragem. Jorge esclarece: É uma boa pergunta. Gosto da ideia de longa-metragem, mas quase 10 anos para a pôr cá fora é um caminho bastante penoso e não sei se tenho entusiamo para passar tanto tempo a fazer outro filme. O tempo da curta-metragem é bastante mais gratificante nesse aspecto, menos formal, menos dispendioso etc. De momento na verdade não me apetece nem uma coisa nem outra, vou acabar a minha tese e depois logo se vê!
No que toca ao futuro, a ideias e projetos que o entusiasmam ou se encontram já em concretização, o realizador refere: tenho o tal filme sobre a minha Tia Cecília Vaz, que conta a história da emigração luso-francesa vista a partir de um só individuo, uma mulher muito especial que passou quase tantas provações como Ulisses ou Hércules, e que também esteve 20 anos para finalmente conseguir regressar à terra dela. De momento tenho uma primeira montagem com uma hora e meia de filme, mas preciso de acabar a tese de doutoramento, que no fundo é sobre o processo de construção deste mesmo filme, e das questões de proximidade e escrita do passado, e só depois é que volto a pensar o que faço com aquilo. Uma longa, uma curta, um livro, uma peça de teatro ou mesmo nada. Porque como me diz constantemente a minha filha de 6 anos, “ninguém tem que saber nada sobre a tua família”.