
Da janela vejo o mundo, de Ana Caterina Lugarini (2021).
Um primeiro plano enquadra o movimento nervoso de dois pés. Os suspiros da protagonista tornam-se audíveis entre os sons que vão saindo das teclas, até que um novo plano a enquadra. Uma mulher idosa, sentada na mesa da sua cozinha, em frente a um computador. Todos os seus gestos vão revelando uma crescente inquietude até fechar o computador num gesto brusco. É nesse momento que a protagonista se descalça e começa a sentir o vazio do chão, remexendo uma memória que o possa preencher.
Um diálogo com a filha revela a sua vontade de voltar a pisar a areia da praia, mostrando-lhe a sua recente postagem no Facebook sobre as memórias dos dias passados e como a areia se grudava no seu corpo quando vinha do mar. A falta de atenção da filha, com o seu olhar fixo no telemóvel ou num pequeno espelho enquanto se maquilha, mostram a desconexão existente entre as duas partes. Assim, a areia torna-se metáfora para a sua atual invisibilidade que vem soterrar, aos poucos, o seu presente. A caixa de areia que coloca em cima da mesa começa a verter areia como uma ampulheta que inexoravelmente vai contando o tempo que resta. Neste momento, o filme entra numa intensificação simbólica e os primeiros grãos de areia vão-se espraiando e acumulando pelos espaços da casa como símbolos vivos das memórias que persistem e do tempo que passa.
A areia que invade o espaço da casa, assim como a água que jorra desde a bancada da cozinha são elementos que emanam desde a vida interior da personagem. E a beleza do filme reside na subtileza com que os signos vão esculpindo o devir da sua memória. Existe uma combinação dinâmica de todos os elementos simbólicos que se conjugam para dar um movimento interior ao próprio filme.
As qualidades inequívocas da realização de Ana Catarina Lugarini residem numa construção simbólica e poética que assenta num trabalho formal preciso. A simplicidade com que coloca em cena cada um dos elementos revela a capacidade em transformar o banal numa superfície fílmica onde confluem as transpirações daquilo que se esconde na interioridade da protagonista.
No final, Lugarini destaca um plano cujo vazio humano é substituído por um espaço invadido por todas as camadas simbólicas que foram emanando desde o interior da personagem. Persiste a ambiguidade desse simbolismo. Se, por um lado, essas intensidades interiores foram soterrando a personagem dentro da sua solidão e invisibilidade; por outro, essa textura que foi sendo urdida desde o seu mundo interior torna-se o derradeiro signo de uma vida que nunca deixou de transbordar.
*Texto escrito no âmbito do programa de formação e capacitação de jornalistas e críticos de cinema de países de língua portuguesa, o Talent Press Rio, realizado em parceria com o Goethe-Institut, a FIPRESCI, e a ABRACCINE.