Um completo desconhecido rumo ao completo desconhecido

"A Complete Unknown" 82024), de James Mangold "A Complete Unknown" 82024), de James Mangold
"A Complete Unknown" 82024), de James Mangold

A virtude do prodígio é tornar-se indomesticável. Talvez o sentido do filme “A Complete Unknown” seja sobre essa vontade indomável de viver da e para a rutura. Da rutura contra a tradição e da rutura contra si mesmo, contra a sua própria criação. Mas há também os “comuns mortais” pelos quais estes homens e estas mulheres extraordinárias se apaixonam contra todas as probabilidades. E o sofrimento de Sylvie está talvez em não compreender como pode ser amada sem pertencer ao Olimpo, ao espaço sideral dos deuses. Por outro lado, talvez também Bob Dylan inveje a placidez das gentes comuns e dependa destas como de uma âncora ante essa urgência estética de viver à beira do precipício. A normalidade pode tornar-se para os freaks no bem mais cobiçado ou, pelo menos, um lugar de conforto depois de toda a turbulência do seu génio e desejo de invulgaridade.   

Pete Seeger, baluarte da tradição do folk que assume como defesa da música de intervenção materializada igualmente no uso deliberado de instrumentos acústicos em detrimento do elétrico, não pode compreender como a rutura estética que Dylan ensaia música após música, álbum após álbum, concerto após concerto, pode surtir também efeitos políticos subversivos em relação ao(s) poder(es) dominante(s) ou instalados. A feroz divisão que Dylan instala na sua última participação no festival de folk, o Newport Festival, representa como que a divisão entre uma visão paternalista da música como arma política e a abertura para o ainda não categorizável, o qual, por isso mesmo, abre espaço para uma nova experiência estética, logo, política. Não é preciso que a arte se subjugue ao paradigma da mensagem política, ao seu arquétipo, muito menos à sua tradição, para que o seu poder subversivo atente contra a moral dominante abrindo as portas para outras possibilidades de sermos em conjunto, de experienciarmos o mundo de uma outra maneira. E será porventura essa a outra mensagem que o filme sobre a cisão de Dylan no quadro do tradicionalismo folk pretende focar.

Dá também que pensar a forma como nos inclinamos a consumir as “estrelas” da mesma maneira que consumimos todos os bens perecíveis como um pacote de batatas fritas ou um hambúrguer. Toda a gente pensa que os talentosos lhes devem alguma coisa em nome dessa entidade abstrata que é a “humanidade”, sem cuidarem que estes são muitas vezes o produto de processos complexos que lhes frustram o direito comum à felicidade individual. Deleitamo-nos com uma boa letra, uma canção estonteante, um poema sem par, negligenciando o sofrimento imenso que possa ter envolvido a criação destas obras de arte.

banner fevereiro 2025 1 1
Publicidade

Skip to content