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Hayao Miyazaki – Como Desenhar um Sonho, por José Alberto Pinheiro

Amplamente reconhecido como um dos mais prolíficos e inovadores autores de cinema de animação, Hayao Miyazaki reclama um lugar absolutamente singular, desafiando constantemente a categorização e compartimentação nas mais enraizadas convenções de género.

Para lá da incrível capacidade técnica e virtuosismo artístico, encontramos um mundo de personagens que com a magia da sua humanidade foram capazes de repercutir uma resposta emocional transgeracional, que não obstante a vincada – e por vezes hermética – presença do património simbólico nipónico, galgaram fronteiras sem qualquer dificuldade.

O autor afirma que o que o move são sobretudo as crianças, não uma em particular, mas todas. Porquê a resposta transgeracional? Arrisco-me a dizer que é precisamente por ser um dos poucos contadores de histórias contemporâneos a possuir essa chave rara, capaz de aceder à criança que tantos adultos, com maior ou menor grau de sucesso, tentam encobrir com a sua máscara social.

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Este alcance valeu-lhe a constante comparação a Walt Disney, mas o que seria exclusivamente um cumprimento elogioso para qualquer artista de animação do mundo, não parece assim tão lisonjeiro aos olhos de Miyazaki.

O primeiro ponto que podemos observar, que distancia o realizador da esmagadora maioria dos contadores de histórias infantis reside na sua recusa de uma abordagem maniqueísta.

Na caracterização das suas personagens, raramente encontramos as típicas simplificações dos mundos a preto e branco, tropeçando amiúde na bondade dos maus e na maldade dos bons.

Esta recusa, que alguns poderão argumentar que atenta contra a eficiência de comunicação com a criança, parece não lhes ser assim tão estranha e representa certamente, de forma mais fidedigna, a complexidade da condição humana.

A poesia e a intuição são pilares de um trabalho que não se manifestam exclusivamente no produto final que nos apresenta, mas que estão presentes desde a génese de cada projecto.

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O método de trabalho do realizador japonês soaria o sinal de alarme num qualquer pitch para encontrar um produtor, ou até mesmo numa apresentação em qualquer sala de aula. No apropriadamente baptizado documentário “The Kingdom of Dreams and Madness” (2013), a realizadora Mami Sunada escancara as portas do lendário estúdio Ghibli para nos mostrar o processo místico de um realizador que tem uma equipa inteira a trabalhar sem fazer a mínima ideia de onde o filme irá parar.

Miyazaki diz não à rigidez dos argumentos, preferindo trabalhar cena a cena, com base nos desenhos de storyboard. Com a segurança de quem se tornou mestre do seu meio, confia no valor emocional de cada momento, tornando-se também ele um viajante pelo seu próprio universo onde coabitam as lendas de outrora, as preocupação de hoje, o impressionismo, surrealismo e realismo mágico.

A cisão entre o homem e a natureza, tão presente no estilo de vida e grande parte dos conteúdos que consumimos hoje, não encontra lugar no universo de Miyazaki, que se apresenta profunda e claramente marcado pelo animismo.

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Em 2013, chega aquela que foi anunciada como a sua derradeira longa-metragem de animação. “As Asas do Vento” obriga-nos a confrontar questões incómodas, que nos recordam do absurdo presente no facto de que os maiores avanços tecnológicos têm quase sempre a sua raiz num contexto de corrida militar. Também aqui Miyazaki recusa o facilitismo da generalização, e separa o sonho infantil e belo do espírito criador, do grupo que absorve esse mesmo sonho para fins de destruição.

O filme foi alvo de fortes criticas, tanto da direita conservadora japonesa como da esquerda. O que em tudo se adequa à referida recusa de simplificações, e que cálculo que tenha deixado o autor mais feliz do que qualquer galardão.

O cinema de Miyazaki é, e sempre foi, um cinema político. Um cinema que desafia cânones e estimula até aqueles que a sociedade insiste em etiquetar como incapazes de produzir pensamento critico fundamentado.

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O caminho de Hayao Miyazaki na animação começa em 1963, quando entra para Toei Animation, trabalhando em diversos projectos de televisão. Neste mesmo ano havia deixado a Universidade de Gakushuin, com licenciaturas em ciências politicas e economia.

Quase uma década depois, trabalha em duas das séries mais reconhecidas pelo público português. Em “Heidi” (1974), realizada por Isao Takahata , contribuiu com argumentos, layouts e desenhos, mas foi o seminal “Conan – O Rapaz do Futuro” (1978) que o apresentou pela primeira vez no cargo de realizador.

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Em 1979 estreia-se na longa-metragem com “O Castelo de Cagliostro”, filme que não registou um grande sucesso aquando do seu lançamento, mas que viria a adquirir estatuto de culto.

Já em 1984, dá sinais do papel cimeiro que viria a ocupar na história da animação, com “Nausicaa do Vale do Vento”.

É aqui que vemos manifestada pela primeira vez a predileção do autor por fortes e aventureiras personagens femininas, em contraciclo com as regras do jogo vigente. É também este filme que precipita a formação do estúdio Ghibli, que se viria a tornar num laboratório incontornável e motor para a evolução do cinema de animação do século XX.

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Durante a década de 80, dirige “O Castelo no Céu” (1986), “O Meu Vizinho Totoro” (1988) e “Kiki – A aprendiz de Feiticeira” (1989). Sobre este último podemos referir, a titulo de curiosidade, a inspiração que o realizador bebeu na cidade do Porto. Se este facto permaneceu durante muito tempo no limiar da especulação/efabulação atribuída aos fãs nortenhos, a página oficial de Facebook do estúdio veio confirmar a veracidade da assunção, em março de 2014.

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Os anos noventa trouxeram a consagração internacional no mainstream, com “Princesa Mononoke” (1997) a tornar-se no primeiro filme de animação a receber o prémio de melhor filme da Academia Japonesa, feito raro que viria a ser repetido com o seu próximo filme: “A Viagem de Chihiro” (2001). Esta película, que não pode deixar de ser destacada, recebeu ainda o Annie Award e o Óscar da Academia para melhor longa-metragem de animação.

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Nos anos que se seguiram, destacaram-se “O Castelo Andante” (2004), “Ponyo à Beira-Mar” (2008) e o mais recente “As Asas do Vento” (2013).

Apesar da anunciada reforma, e da propalada impossibilidade de Miyazaki vir alguma vez a trabalhar em CGI, o autor irá lançar em 2018 a curta-metragem “Boro the Caterpillar”, destinada a ser exibida exclusivamente no museu do estúdio Ghibli.

Uma das muitas marcas do cinema de Hayao Miyazaki, é o equilíbrio ímpar entre a acção e os momentos de contemplação, é nesses interstícios que o seu processo místico nos releva, através do Ma (間) , essa tocante humanidade que fez dele um dos grandes mestres do nosso tempo.

José Alberto Pinheiro

realizador e professor do ensino superior

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