Lembro-me de, há um par de anos, ter visto a curta “Fim-de-Semana” e de ter sentido que algo me cativara naquele filme. Ficou-me sempre na memória e o lado positivo de ser esquecido é fazer da minha memória o meu critério principal para avaliar um filme. Por um lado, não terão o prazer de encontrar nos meus textos a teia enciclopédica de remissões para todos os filmes da história do cinema que possam estar ligados ao filme sobre o qual vos escrevo, por outro, tento que a minha memória, dentro da sua volatilidade, funcione mais pelas reverberações que um filme possa – ou não – deixar dentro de mim. Com “Fim-de-Semana” essa memória preservou-se com o tempo e. apesar de nunca a ter colocado em palavras, sinto ainda a frescura dessa experiência.
Talvez fosse o ritmo lento e contemplativo, ou a sensação de uma temporalidade quase estagnada que, à força do silêncio que perpassa todas as imagens, terá embatido na minha sensibilidade com bastante força; por sentir o filme, naquilo que ele é, por sentir que ele não pretende ser nada mais do que aquilo que já é. Pois, existem muitos filmes que não são, que não passam a barreira da sua entificação, existindo para consumo ou complacência e existem os que não são à força de tanto quererem ser. Os filmes de Cláudia Varejão são… Possuem aquela qualidade rara de passarem diante dos nossos olhos com a mesma naturalidade com que sentimos uma pequena brisa, quando abrimos uma janela.
“Amor Fati” não é diferente. A premissa do filme é simples: que momento especial é esse em que sentimos que uma nova presença redefiniu a totalidade do sentido das nossas vidas? De onde vem esse estranho sentimento de chegada, de destino? Mas quão rara é esta certeza estoica, este sentimento profundo que Nietzsche atribuía aos espíritos mais fortes, capazes de afirmar todos os momentos da vida como um destino que se quer com a totalidade da sua vontade? Ora, para Varejão ama-se o destino na medida em que se ama alguém ou algo… A resposta a estas perguntas Varejão consegue dá-las sem necessitar das suas palavras. É através de um estilo observativo que a realizadora filma a vida de várias pessoas que, em algum momento, encontraram uma companhia: duas irmãs idosas que só se têm uma à outra; duas irmãs gémeas que ainda vestem igual; o amor entre um homem que se traveste como cantora num clube e o seu cão ainda bebé; um jovem cego e a emoção que o futebol lhe proporciona; o nascimento de um bebé dentro de uma família de etnia cigana… O estilo observativo deixa que todas estas personagens nos apareçam desde o seu mistério: sem termos acesso aos seus passados, o presente que vemos nas imagens é como um destino que não cessa de chegar.
Varejão consegue filmar o sumo dos dias, a forma como a existência quotidiana se torna um mar aparentemente calmo onde se navega pela força dos gestos mais simples. Se as personagens, nos seus filmes, não param de sentir prazer na forma livre e dançante com que mergulham é porque somos seres naturalmente imersivos: e é na vida onde estamos desde sempre mergulhados. Toda a beleza do seu cinema parece residir nessa forma de filmar com a mesma indiferença e força contemplativa com que um gato nos olha desde o seu lugar elevado. É o charme de um olhar solitário que, quando projetado numa tela, consegue mostrar um segredo que, sem o seu gesto de criação, ficaria condenado a esse lugar de invisibilidade que amiúde nos suga os momentos de beleza que ainda nos é permitido recolher do mundo. Não escondo a minha afinidade profunda com esta forma de fazer cinema, que surge quase com a mesma espontaneidade do fotógrafo que se faz acompanhar da sua câmara para estar preparado para aquilo que perante os seus olhos se impõe. Em “Amor Fati” sentimos essa rara sensação onde tudo está autorizado a falhar… É também um cinema que se faz apontando para um real que lhe estava destinado – é na realidade que o cinema encontra o seu amor fati. Tal como as personagens do filme encontraram os seus pares e conquistaram uma forma de vida que, sem esse encontro, estaria condenada à solidão, uma câmara de filmar pode redimir a própria realidade no momento em que ela tende a resvalar para um nada.
Talvez o segredo da humanidade e ternura com que a realizadora filma esteja na forma como quebra os movimentos do cinema convencional, que sempre filma “de cá para lá”. Varejão inverte esse sentido e troca a primazia dos espaços geográficos – onde as personagens estariam inseridas e presas -, para começar a filmar desse “lá”, onde o corpo se destaca do espaço circundante. Primeiro o rosto, as mãos; depois a geografia, a paisagem. Inverte o movimento de esmagamento dos corpos pelo espaço, para ancorar nos corpos o fio de Ariadne da sua câmara.
Para as coisas mais belas é preciso tempo para as observar. Em “Amor Fati” esse tempo passa pelo crepitar da madeira que arde numa lareira onde duas mãos se esfregam para se aquecer; pela presença da água e as suas percussões e sinfonias várias; pelos sons da televisão do café onde as irmãs assistem juntas à telenovela; pelo som do rádio onde o jovem invisual vai buscar a emoção que vive com um jogo do Benfica; pelo som das orações que as duas irmãs repetem, como se o som das orações se tornasse uma nova companhia. Sentir este tempo, que a realizadora tão bem nos consegue passar pela forma como usa o som nos seus filmes, implica um compromisso da visão e da atenção e isto torna o cinema um momento que necessita de um forte sentido de fidelidade do espectador para com o filme. Um filme assim, exige de nós uma atenção hoje quase impossível, como se nos pedisse a sua reeducação. E é precisamente nessa exigência de um sentido contemplativo que reside o seu grande valor.
Varejão filma com extrema sensibilidade estes vínculos humanos que acabam por nos fidelizar ao outro; e talvez precisemos, hoje mais do que nunca, desta mesma força vinculativa para conseguir ver um filme como se ele fosse retornar eternamente…