Depois de sete curtas-metragens e uma longa (“O Som ao Redor” (2012)), Kleber Mendonça Filho assume-se como uma referência no cinema brasileiro com “Aquarius”, um dos filmes mais interessantes do ano. Este é um filme de resistência e discreto na sua mensagem política e moralista. “Aquarius” é um retrato realista sobre o sistema social e político atual do Brasil, visto por uma mulher da classe média. Essa mulher chama-se Clara, uma sexagenária viúva que vive no edifício Aquarius, no Recife. É pressionada a abandonar o seu apartamento por uma empresa de construção que o quer destruir, para no seu lugar construir mais um condomínio moderno. Clara primeiro resiste e depois luta contra a Construtora Bonfim.
Filme moderno este que nos mostra a importância da memória e de que esta não tem preço. “Aquarius” insiste na persistência da memória, que é o mais valioso que temos. O apartamento, onde viveu grande parte da sua vida, é tudo o que resta a Clara, que guarda memórias de várias gerações da sua família. Clara quer salvar essas memórias ali vividas no apartamento, assim como as centenas de vinis que ela tem em casa, que guardam memórias únicas. Naquela casa viveu com o marido e viu os seus três filhos crescer. Ela envelhece, a cidade cresce e à volta muitos dos edifícios já não são os mesmos. São blocos de betão, arranha ceús de luxo que fazem sombra na única resistente, Clara. O edifício Aquarius é um fantasma, mas Clara nega. Poderá ser até um fantasma, mas está vivo. Clara é uma resistente, uma lutadora (combateu e sobreviveu a um cancro), que tem a liberdade de dizer ‘não’, a coragem e um direito que infelizmente nem todos temos, de dizer ‘não’. Não me vão corromper. Não me vão comprar. Não decidem a minha vida. Por tudo isto Clara acaba por ser uma heróica. Teve a coragem de fazer frente ao sistema, ao poder. Mas Kleber podia ter ido mais longe com toda esta resistência, para que a mensagem política fosse mais forte e direta. Teria sido um filme ainda melhor.
Entre o passado e presente ficamos agarrados à personagem de Clara, soberbamente bem interpretada por Sonia Braga. Expõe-nos uma mulher independente e de espírito livre, que faz o espectador identificar-se com ela e ser a nossa voz de luta. Digamos que Clara traz no corpo as marcas do seu tempo, o desespero, a vida no momento, como cantava Taiguara na música “Hoje”. Banda Sonora, argumento e montagem estão muito bem conseguidos neste que é um melodrama realista e atual, que acaba por pontuar, com pequenos detalhes, o preconceito (orientação sexual, racismo e estatuto social).
Este é um filme moderno, um retrato político, por não mostrar um Brasil dominado pela violência e crime de rua, mas sim por algo mais complexo e sério, o crime e a corrupção do sistema, do dinheiro e do poder das grandes empresas. Algo que, por exemplo, “Tropa de Elite 2” tentou descortinar, e bem, a corrupção do próprio sistema. Em “Aquarius” não há esse tipo de violência, mas há uma construção do medo, uma constante incerteza. Uma procura de um caminho.
Realização: Kleber Mendonça Filho
Argumento: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Sonia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos
Brasil/2016 – Drama
Sinopse: Clara, uma viúva de 65 anos, crítica de música reformada, nasceu numa família rica e tradicional no Recife, Brasil. Ela é a última residente do Aquarius, um edifício construído nos anos 40, na zona cara junto ao mar da Avenida Boa Viagem, Recife. Todos os apartamentos vizinhos já foram adquiridos pela empresa que apresentou projetos para construir um novo empreendimento. Clara jura que só sairá dali morta e entra numa guerra fria com a empresa, num confronto obscuro, assustador e emocionalmente desgastante. Esta tensão não só perturba Clara como torna as suas rotinas exasperantes, levando-a refletir sobre si e aqueles que ama, o seu passado e o seu futuro.