O cineasta Fritz Lang marcou o cinema, no período mudo, com obras primas como “O Doutor Mabuse” (1922) e “Metropolis” (1927). Mas foi também com uma obra-prima que estreou o cinema sonoro, com “M – Matou” (1931). A sua primeira obra sonora é talvez a sua grande obra-prima, que até aos dias de hoje continua a ser vista como uma obra completa e magistral na história do cinema.
Lang escolheu para o seu primeiro filme falado um caso real de um assassino em série, Hans Beckert (interpretado por Peter Lorre) um criminoso conhecido como o “vampiro de Dusseldorf”, que foi condenado à morte em 1931, dois meses depois da estreia do filme de Lang. Inspirado neste criminoso verdadeiro o realizador foca-se em contar todo o processo de busca do assassino de crianças pelas autoridades policiais, que deixam toda a população em alerta. A polícia multiplica as investigações desorganizando a população e atrapalhando os crimes da máfia local, o que faz com que esta passe também a procurar pelo assassino. Lang acompanha todo o frenesim da investigação policial pormenorizadamente, passando pela cobertura da imprensa, das pressões políticas e as milícias populares, fazendo com que, ironicamente, sejam os criminosos a perseguir o criminoso, tratando-o como um animal. Por ironia, os criminosos que julgam o assassino, são apanhados no final pela polícia, impedindo que ele fosse morto em praça pública.
“Os assassinos estão entre nós” seria a proposta inicial para o titulo do filme, tendo depois a censura pressionado para que ficasse apenas “M”. Nesta poderosa obra-prima mais do que a descrição de um caso real, Lang fez o retrato de uma Alemanha em vésperas da chegada dos nazis ao poder. Hitler chegaria ao poder dois anos depois (em 1933). Este filme serve de metáfora para o nascimento do Nazismo, tendo aliás conseguido antever os problemas que o Nazismo traria ao mundo pouco tempo depois. “M” denuncia todos os estratos sociais da sociedade alemã, que visam apenas destruir o indivíduo, procurando um bode expiatório. Mostra-nos como a sociedade se consegue organizar, seja para fazer o bem ou o mal. Neste caso, temos de um lado a lei e do outro a anti-lei, que tinham um inimigo em comum. Os polícias, que representam a lei, não conseguem apanhar o assassino e demonstram assim as suas falhas, fraquezas da lei. Os criminosos locais usam isso como motivação para se acharem detentores da razão e armados em justiceiros procuram também o assassino. A cena do julgamento mostra-nos o pior lado do ser humano. Questiona-se a eficiência da polícia e o papel das instituições de doentes mentais. Questiona quem será afinal o assassino. Não seremos todos? Não estará o mal dentro de cade um de nós? Seria o assassino um doente mental, ou foi apenas um truque para não receber pena de morte? O filme não responde a todas estas questões, mas ajuda-nos a reflectir sobre a liberdade e tolerância do ser humano. Qualquer ser por mais monstruoso que seja, tem direitos e deve ser julgado pelas entidades competentes. Nenhum de nós tem adquirido o direito de tirar a vida a outro ser. Os criminosos não conseguem ver o assassino como um doente nem como um deles. Acham que a única forma de impedir que mais mortes ocorram é matando-o. Mesmo no final do filme, como constata uma das mães que perdeu a sua filha, “nada disto traz os nossos filhos de volta. Devíamos prestar ainda mais atenção aos nossos filhos.”.
Recorrendo à montagem paralela e à narração em voz over, técnicas inovadoras na época, Lang é magistral no uso do som, criando-lhe uma linguagem pouco comum na altura. Foi dos primeiros a usar o som para contar a história. Neste caso, usou a música “Peer Gynt”, do norueguês Edvard Grieg, para o assobio do assassino, identificando-o desta forma sem o vermos. Esta imagem de um assassino que assobia enquanto caminha calmamente pelas ruas ajuda a criar um clima de suspense e terror. O som ajuda-nos a identificar a presença do assassino, mas também ajuda a personagem de um velho cego, que, ironicamente, descobre o assassino ao ouvir o assobio. O som do assobio personifica o próprio terror, neste que é um filme de sons e também de silêncios.
Tecnicamente é um filme inovador a sua fotografia é influenciada pelo expressionismo alemão, com as suas imagens escuras e sombras. Mas um dos grandes pilares deste filme é o Peter Lorre. Os seus olhos esbugalhados, os seus gritos na cena do julgamento, a sua voz inconfundível e visão negra e atormentada, fazem deste o papel da sua vida. A personagem de Lorre é a única forte na narrativa, sendo que todas as outras personagens ajudam a contar a história e servem para compreendermos o comportamento humano.
“M” é um filme de um rigor absoluto, um filme onde cada imagem está carregada de significados, onde o tempo de cada plano está milimetricamente contado, ao pormenor. Um filme magistral que evidencia a genialidade de Fritz Lang e denuncia a arrogância de uma sociedade marginal que se une para combater qualquer um que tente destruir o seu equilíbrio. Um clássico absoluto, perturbador, que reflecte os comportamentos de uma sociedade doente.
Nota: Este filme integra o Ciclo de Cinema Aberrações