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“Diamantino” – A Estranha Distopia

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A distopia está mascarada, mas não o parece. Parece-se com a normalidade das imagens que enganam acerca dela. Ainda mais quando ela é tão estranha. Mas, afinal, o que é essa distopia em que se vive já e que tão difícil é de fazer-se melhorar e de possibilitar a ideia de democracia verdadeira? Vivemos já, realmente, num outro mundo, mais prendido, mais desequilibrado, mais enganado e enganador? Mas o que é que isso tem a ver com a estrela futebolística em decadência, Diamantino Matamouros (Carloto Cotta), perdida em devaneios com cãezinhos felpudos e chutos de bola que a levam para o ar? Nada. Pois o filme é irónico, auto-divertidamente irónico. Porque se fala nele de fins e (des)fins, de chegadas ao nada e à necessidade de refazer, de olhar e voltar a olhar para o que se é e o que se foi, e mais ainda, para o que não se pode querer que se seja. Enfim, das coisas mais negras do mundo distópico em que vivemos (e que talvez não saibamos, realmente, que é nele que nos enganamos a viver).

Primeiro, o entorno maior: as estrelas e o Universo. Oblívias ao que vem a seguir, imagens geradas a computador, de altíssima resolução, estrelas tão brilhantes quanto a estrela titular do filme, mas que nada querem saber do pequeno mundo que desfilará em seguida. Estão a ver e a pairar de cima, mundo imenso, galáctica incompreensão para com as ínfimas coisas que se passam naquele país pequeno que é o segundo entorno: esse Portugal, do futuro próximo ou da atual contemporaneidade, que é uma “small and strange dystopia”, já que quer sair da União Europeia, quer ser só outra vez, porque é mais forte e está melhor sozinho, é muro intransponível a construir, é polícia secreta bem oleada e os seus agentes secretos amantes a trabalhar a partir de torres monolíticas de emprego da legalidade pseudodemocrática ou protoditatorial (ou ditatorial mesmo, não se sabe). A mordacidade de Abrantes e Schmidt é exatamente essa: ao retomar ironicamente a visualidade (por meios moderno-contemporâneos) do regime ditatorial e a lógica discursiva e simbólica das suas bandeiras ideológicas (a imperiosa solitude da nação, a sua força histórica, e bem a jeito, o centralismo hipnótico do futebol como suporte de uma cultura nacionalista), perguntam os dois, de forma bem clara – e diga-se, bem disposta – se já não estamos lá, sem o saber, ou perto, ou até muito perto, de lá chegar, sem nisso repararmos? O jogo é tão importante quanto funciona em si mesmo: um filme que olha jocosamente para o que poderíamos ter sido, ao mesmo tempo que continuámos a ser o que éramos, e ao mesmo tempo que nos achávamos como já sendo outros. O ser-se “grande” outra vez, invocando os heróis de outrora, como sempre fizemos, mas sobre novas formas – jogadores de futebol de alcance global – mais serve para nos fazer radicados a esta distopia a que se chama democracia moderna e capitalismo avançado, e esse avanço ela só dá realmente a quem tem o capital (e não por menos, o nosso Diamantino é avançado e multimilionário). A distopia de que o filme fala é a da (aparente?) democracia em que todos nós – desde Portugal à Finlândia – vivemos. Não estará a democracia a negar-se a si mesma? A ser ela, já em si mesma, o cerne da falta dela que há de vir, quando todos quererão sair da qualquer organização supranacional a que pertençam e assim queiram também ser “great but alone again”? Que não se esqueça, pode nem ser esta a questão, pois se lembre, o filme é irónico!

Por fim, o terceiro entorno: a nossa figura mítica, frágil mas icónica, distraído mas honesto, o nosso Diamantino Matamouros. Se bem-aventurados são os simples de coração, então Diamantino é o mais venturoso dos homens e só quem é o sal da terra pode ser o veículo de outras funções que são mostradoras do mundo atual como o é este jogador-astro de fama mundial. Acima de tudo, a sua alheada percepção desse mesmo mundo fá-lo agente de decisões que ativam uma espécie de cidadania que pode servir de exemplo: ele não sabe o que são refugiados, chama-os de “fugiados” e tem que perguntar quem são aquelas pessoas que transbordam do barco à deriva que se cruza com o seu iate. Mas ele quer adoptar um refugiado, e di-lo num programa de televisão. De forma algo absurda ele marca uma posição, pelo menos, de reconhecimento – por força do lugar que tem no mundo do filme que titula – da situação real do problema migratório. A cidadania do absurdo de Diamantino, deslocada e parangona, por mais “kitsch” que seja, é uma claramente da vontade de Abrantes e Schmidt, é o modo irónico com que, uma vez mais, conduzem o seu filme: fala-se de migrações criadas pelo desnivelamento de rendimentos entre Norte e Sul, fomentado pelas práticas comerciais desfavoráveis às economias não (tão) avançadas; fala-se dos transgéneros e da necessidade de reconhecer as identidades de género auto- diferenciadas e da aceitação do dizer-se (e do seu valor como) não normalizadas; fala-se das operações e das contas “off-shore” que são a benesse dos que escondem o capital não produtivo (aquele a que se chama “avançado”) que circula pelos altos escalões do mundo financeiro e das grandes fortunas.

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Todos estes sérios e apontadores comentários são feitos através de uma personagem figurativa – e como em qualquer ficção, toda a parecença com pessoas vivas é pura coincidência, como é preciso que seja para a fábula sardónica, mas cautelar – e de um filme claramente bem-disposto, irónico-mordaz desde o princípio, que fala por si e através de si, do mundo que o faz.

O cinema contemporâneo não tem que ser pesadamente autoral, mas pode ser autorialmente comprometido, usando a forma cinemática que lhe permita chegar o mais longe possível, no que toca à sua necessária inteligibilidade para quem o vê. E, ao fim e ao cabo, este é um filme imensamente divertido, que utiliza as mais interessantes (e cómicas) convenções de género que o cinema americano nos legou: as da ação, as do thriller, as da aventura. Por vezes, é pela leveza que se fala das coisas muito sérias do mundo.