Hirayama (Koji Yakusho) respira o ar da manhã. Nada pode ser mais positivo do que o respirar satisfeito do ar do mundo. Pois, para alguns, o mundo é tão simplesmente como ele é. E está lá para ser vivido. E sentido. E apreciado. Literalmente.
Claro que realizar um filme sobre a beleza das coisas mundanas a serem tão só mundanas não é tarefa propriamente fácil. Filmar uma personagem repetitiva, que replica, sem desvio, a rotina sempre igual do seu dia a dia, não implica isso a feitura de um filme também ele repetitivo? Dir-se-ia que sim. Porque até mesmo ele é repetidor, ou não tivesse ele que seguir a lógica de uma vida que se repete a si mesma. Mas não o é. É sim um filme poético, porque é um de verdadeiras personagens, todas elas cheias de vidas não despiciendas de sentido próprio, de valia e de beleza singular.
Em primeiro lugar, Hirayama. Limpador de casas de banho públicas, um relógio humano ambulante, fazedor de calendários diários que são as horas e momentos da sua vida. Propõe e leva a cabo, quotidianamente, uma cadência de vida bela e saudável: o acordar automático, não estremunhado, com o simples e suave abrir dos olhos, à hora certa e necessária; o dobrar do edredom; o borrifar das suas plantas; o vestir da farda de trabalho; o tal respirar do ar da alvorada; o comprar da lata de café na máquina de venda junto à sua casa; o escolher da cassete áudio a ser ouvida nesse dia de condução; o beber do trago de café; o chegar às casas de banho a limpar e a mecanicidade rápida, mas cuidada, com que cumpre o seu trabalho; o almoço frugal, mas bem degustado, no jardim; o tirar de fotografias (analógicas) às árvores encontradas pelo olhar; o banho diário após a laboração; a refeição do fim de dia; a leitura da noite; o dormir descansado. O enredo desta vida realiza, por si só, o filme: Wim Wenders acompanha o viver de Hirayama, coloca a câmara “aqui” hoje, “acolá” amanhã, reencontrando a ação do dia anterior para a diferenciar no dia seguinte, renovando o ponto de vista e a distância de filmagem para um mesmo ato repetido em jornadas diferentes. A encenação de uma rotina passa assim a ser um exercício do cinemático e da poesia das imagens urbanas – e como Wenders filma bem as cidades – e ainda um contínuo travelling – entrecortado, mas fluido – pelo tecido construído das coisas humanas: os seus parques, os seus pássaros, os seus edifícios, as suas ruas, as suas lojas, as suas luzes de néon, os seus carros, os seus túneis.
A segunda grande personagem deste enredo é a cidade de Tóquio, ela que é cinema de si mesma, e sempre o foi, filmada sem fim, lugar que não precisa de projetores cinematográficos nas suas ruas para iluminar os planos nela filmados porque as suas luminárias urbanas já emitem luz suficiente para a exposição correta e necessária. A cidade de Tóquio é, no entanto, um filme (de si própria) de que pouco realmente se sabe. Wenders leva-nos um pouco mais além – e ainda mais do que Sofia Coppola nos levou em “O Amor é um Lugar Estranho/Lost in Translation” – não só para para outros espaços toquianos que não são os que mais se vêem registados em filmes realizados por cineastas ocidentais – a pequena rua do restaurante onde Hirayama vai no seu dia de folga ou as escadas debaixo da ponte onde dança um jogo de sombras com um muito recente conhecido – mas também para uma muito registável e serena sensação espacial de urbanidade plácida, sempre caminhada ou corrida com calma, apesar dos muitos transeuntes e dos muitos carros.
A Tóquio de Wenders é um mundo onde o simples acontecer é já digno da sua cinematização, no que poderíamos chamar de coisas filmadas (porque filmáveis) do urbano: a mulher que partilha o almoço calado com Hirayama, e que nunca lhe retribui o sorriso – apesar de estarem sentados no mesmo jardim, só a alguns metros um do outro – e que antes o olha muito seriamente, o que cria a situação burlesca de uma conversa de silenciosos que termina com nada dito; a sequência – por sinal bem repleta de ação – da tentativa de venda da cassete áudio de Hirayama, levada a cabo pelo seu bem displicente assistente Takashi (Tokio Emoto), que afinal só procura um rendimento rápido para poder conquistar o seu interesse de momento, a mais bem apreciativa Aya (Aoi Kamada), e que assim lhe confisca não só um bem precioso como igualmente a carrinha de trabalho, numa viagem atravessadora da cidade, até encontrarem a mais atarracada das lojas de música já vistas no cinema. Mas o negócio não se faz, como não se poderia fazer, a cassete áudio vale por si mesma, é uma fortuna sem preço e que não se vende; a chegada e estadia de Niko (Arisa Nakano), a sobrinha de Hirayama, demasiado crescida já para que ele saiba realmente lidar com uma adolescente. No entanto, ele leva-a consigo para o trabalho, mostra-lhe o que é uma “cassete de música” (sim, ela fica mesmo a saber o que é uma cassete de música e o que é fita magnética) e é, durante um par de dias, um pai sem saber como o ser. Reencontra a sua irmã para lhe entregar a filha fugida (e fica mais ou menos aparente que Hirayama parece ser da classe alta e que escolheu para si uma vida bem mais simples do que aquela que a irmã ostenta); o ouvir de uma versão japonesa da canção “The House of The Rising Sun”, cantada por uma voz feminina da mais perfeita afinação e modulação, enquanto a banda sonora de uma refeição que Hirayama partilha com outros bem melancólicos solitários.
Arriscar e afirmar que este filme é perfeito ao falar sobre dias perfeitos é dizer que filmar é um ato de escolher mostrar as coisas – e as nossas coisas são as da cidade – tal como elas são e onde elas estão. Se os lugares do urbano são também poesias para e a serem filmadas, então este “Dias Perfeitos” é mais uma sinfonia de uma cidade, feita de despertares, vivências, idas e vindas, trabalhos e refeições, leituras e dormidas. E se assim vivêssemos tão poeticamente as nossas próprias vidas como Hirayama o faz, tão felizes seríamos, tanto quanto ele o é, e que tão belos filmes, como ele os faz, faríamos.