Duna (2021) – O Grão e o Suor

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A grande duna e a grande política. Um planeta todo ele de areia castanha e uma galáxia toda ela de um estado interplanetário burocrático- aristocrático, são a forja da história de iniciação e passagem de um rapaz que se faz homem, a escritura de uma ordem que se prepara para ser outra, a erosão de uma Máquina que se debate com a Ecologia, o esquecer de uma salubridade temperada que se vaporiza na aridez seca e desprovida.

Do mar e da chuva para a areia e o grão. Variações de cor e luminosidade: da meia-luz do clima molhado e semi-outonal de Caladan para a alta luz tórrida de Arrakis, a matização é uma de chamada à luta seca e de olhos cerrados e ao uso da força transpirada e pulsante de calor. Não mais a água – fonte de vida e em vida – mas sim a ínfima parte dela, enterrada nos poros da pele, a água-suor fugidia, cristalizada na areia, não gota viva, mas sim partícula arranhadora e rugosa. As eco-biologias contraditórias: da pujança nutrida à minimalidade desértica. As economias contrastantes: da avançada e tomadora à subdesenvolvida e tomada. Se a Casa Atreides toma o lugar de extratora de recursos à Casa Harkonnen, Arrakis continua a ser o espaço de pilhagem, de construção do valor-lucro, ao arrepio da natividade planetária, a dos Fremen, desprovidos da propriedade monetária e produtiva do seu local de origem e habitação.

Se a Especiaria de Arrakis – e sua extração – lembra outras tantas formas de exploração comercial de imensas sociedades nativas por outras mais maquinicamente e guerreiramente apetrechadas, ela é tão esse pó com valor de comércio como é uma mescla de físico e etéreo, possibilitadora da viagem interplanetária – e bem mais valioso da galáxia – e um material exótico e quasi-esotérico de percepção extra-sensorial que vale ainda mais pelo seu valor exopolítico, para lá do planeta e em direção do muito maior espaço galáctico. À volta dela, gira toda a planeto-política que rege um universo económico com o tamanho de um Império. Aliás, o filme começa com um lançar de dados calculado e cerimonial. A questão é posta de forma retórica, a decisão está tomada e a política definida: tomarão os Atreide a função de provedores da Especiaria ao Império? Sim, responde o Duque Leto Atreides (Oscar Isaac), sabendo ele que se trata de uma armadilha política desenhada pelo Imperador – aparentemente, oferecedor de maior rendimento e riqueza – e ele tem por certo que o soberano imperial usará a situação criada para acender o rastilho da guerra e colocar em conflito duas grandes Casas – já que os Harkonnen não ficarão impávidos à perda de uma fonte imensa de lucro – e assim levar à destruição de pelo menos uma delas. E Leto sabe bem que o Imperador prefere que seja a sua a cair.

Os temas são pois o Poder e o Domínio: o poder de decidir e jogar, de arquitetar e tecer cenários de transferência e desequilíbrio do balanço político; o poder de multiplicar e mover forças imensas (exércitos, burocracias político-económicas) de um território para outro (aqui sempre ao nível do absolutamente grande de uma galáxia). Mas fica sempre expressa a importância da ideia da Casa e da Família, outro duplo tema deste Duna: a casa como perenidade da família e aquela como prosseguimento desta, tal como fica expresso na cena em que Leto ensina ao filho Paul Atreides (Timothée Chalamet) a importante lição da ponderação senhorial: ele deve ser, acima de tudo, temperado nas suas impulsões e decisões, de modo a poder ser o continuador do nome da família e da sua Casa política e económica.

É ele, Paul, que se inicia nesse grande jogo dos poderes e dos anéis ducais. É ele que se fará homem e talvez o Messias presumido que a sua mãe, a Senhora Jessica Atreides (Rebecca Ferguson) trouxe ao mundo, não só como fruto do seu amor a Leto, mas também como resultado jogado de uma ainda mais ampla – porque universal e histórica – maquinação da Irmandade Bene Gesserit, à qual pertence. Ela considera-se corporizada de um papel tremendo e fundamental: a de ser a progenitora e educadora do um ser de cariz universal, o Escolhido para governar o Império e a Galáxia, um que ela sabe ser (tanto quanto esse saber é um pressentir e um perceber) o seu filho Paul. Franzino, pouco experienciado, em claro processo de aprendizagem e amadurecimento, mas inteligente e perceptivo (mais do que espera, mais do que consegue compreender) Paul é o anti-herói que se faz homem extraordinário ao nivelar-se perante o desafio de ter que assumir o nome e o título de Duque, sem exército e cadeira ducal, após a (esperada) invasão dos Harkonnen para retoma de Arrakis. Mesmo a Grande Política, a de nível interplanetário, não deixa de ter processos similares à da mais pequena: traição, tomada de lados, decapitação da liderança, destruição da capacidade de combate, aniquilação das elites políticas e administrativas. Ficam a areia, uma mãe e um filho, Jessica e Paul, escondidos debaixo da duna, com a água do seu suor, bebida dos fatos que têm retida.

A Grande Casa aristocrática caminha agora no deserto, desprovida e desconectada do seu centro. A inversão de papéis é total: Paul tem que lutar para poder ser recebido e ajudado pelos Fremen. O seu primeiro matar (forma de ascensão e de assomar de poder) é mais um passo dado – ainda que relutantemente – no continuado materializar das visões do seu futuro que a extra-percepção e a Especiaria lhe dão. Encontrada a mulher do sangue – único vermelho por entre todo o imenso castanho do planeta – que povoa as suas imagens mentais, Chani (Zendaya), Paul sabe, porque se lembra, da importância das palavras do pai: para conseguir suplantar os inimigos, os Atreides têm que obter o “poder do deserto”, aquele que só os Fremen lhes poderão emprestar. Assim emerge novamente o tema ecológico: a própria areia e as suas coisas, os seus vermes, a sua especiaria, intoxicante e alucinogénia, são as forças elementares e naturais que poderão reequilibrar – ou desequilibrar – a balança de poder. No planeta não terra-formado, onde jaz escondida a promessa da fertilidade do vegetal – porque o gasoso da areia e da sua especiaria é mais economicamente apetecível – serão os autóctones, os menos avançados, a serem os fazedores do Poder.

 

© 2021 Luís Miguel Martins Miranda

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