Nota: Texto escrito pelo cineasta José Filipe Costa, realizador dos filmes “Linha Vermelha” (2012) e “Prazer, Camaradas!” (2019), no âmbito dos 47 anos da Revolução do 25 de abril de 1974, a convite do Cinema Sétima Arte.
[divider]É um prazer, camaradas! Venham daí![/divider]
Abril são os chaimites a passarem na rua em que ficava a casa da minha avó. Abril é a minha professora da Primária a dizer que tínhamos de pintar criativamente, que a escola já não era só para aprender a ler, a escrever e a contar, que ficava para trás a cultura da disciplina rígida e do adestramento por meio das reguadas (mas ainda me deu algumas, a salafrária). E é também uma das minhas professoras do Preparatório a dizer que poderíamos cultivar o espírito critico e participativo, que as aulas assim seriam mais lúdicas e cativantes. Abril é sairmos da escola para apanhar a espiga num Maio calorento e claro. É considerarmos um espaço público, um lugar que é nosso, partilhado. O parque infantil era para todos, feito por todos. Vinha a carrinha da biblioteca itinerante da Calouste Gulbenkian, com aquele cheiro interior de páginas amarelas de livros e livros enfileirados nas prateleiras. Isto é mais que Abril, é o mundo todo a abrir-se em novos “Abris”.
Andávamos todos a balbuciar uma nova língua, velhos e novos, a ensaiar outros gestos e comportamentos. Pouco conhecíamos disto. Às vezes éramos trôpegos e tolos a lidar com esta avalanche que Abril tinha desencadeado: “isto agora é de todos, não é só de alguns”. “Estás a fazer-te mais do que os outros, mas aqui somos todos iguais.” Mas no interior disto tudo, as mulheres ainda laboravam como dantes, e obedeciam como antes, e ficavam caladinhas quando o macho falava em casa. E na cama então… não entremos ainda nesses lençóis que estão sujos.
Foi o que eu aprendi ao fazer o filme “Prazer, Camaradas!” que será lançado em alguns cineclubes em abril e nas salas de cinema a 20 de maio. Nas aldeias da Azambuja, coração do ribatejo, por onde andei a pesquisar, os homens tinham vergonha de serem vistos com sacos de compras. Lá tinham ido eles à mercearia, os maricas. Isso cabe às mulheres, elas é que vão às compras. Um homem com um saco de compras na mão era um homem vestido de mulher, com uma cabeleira e os lábios pintados. Assim parecia.
Em “Prazer, Camaradas!” lá estão os portugueses que tinham estado exilados a alfabetizar os analfas – eram assim que lhes chamavam. Não fizemos contas, mas os analfas deviam ser predominantemente mulheres. Que não percebiam nada dos homens e vice-versa. Iam aos tanques colectivos lavar a roupa – que nenhum homem lá fosse – que aquilo era domínio delas!
Muitos estrangeiros vieram então para as cooperativas que se formaram nestas aldeias. Vinham de França, Itália, Alemanha – tantos que vieram da Alemanha! E contou-me uma alemã que um conterrâneo seu tinha a mania de ir lavar a roupa ao tanque coletivo. Ali estavam as mulheres todas a vê-lo – o maricas – “deixa-te disso, és estrangeiro, não sabes nada de nós, mas homens aqui não põem a roupa na sabonária e esfregam-na até esfrangalharem as mãos.” E pegavam elas nas roupas do estrangeiro para a lavarem! Melhor para o alemão que ficava com menos trabalho! Aqui a divisão de trabalho e de papéis é assim – “mulheres para a costura, rapazes para a vinhas ou para uma oficinazinha”…
Que “Prazer, Camaradas!” que afinal tenham vindo lá do norte europeu, não sei bem onde fica. Elas vêm sem soutien, às vezes são capazes de ficar sem roupa por dá cá aquela palha; eles têm o cabelo longo, quem sabe, missangas nos punhos e símbolos “paz sim, guerra não!”. E vem com livros lidos, relidos e introjectados. Livros como A Revolução Sexual de Wilhelm Reich, o pai da dita revolução sexual, pois então. Dizia Reich que havia que libertar os pontos de bloqueio que entravavam a plena potência orgástica. Isto está no filme “Prazer, Camaradas!” e inclui homens e mulheres: “Esta excitação é socialmente reprimida. Para escapar a estes recalques recorremos a estratégias dissimuladas. As mulheres, por exemplo, apertam as coxas uma contra a outra; andar de bicicleta ou de mota é uma oportunidade bastante aproveitável de se masturbarem inconscientemente. Libertam assim a zona pélvica ao mesmo tempo que fogem subrepticiamente à castração social. Os homens são impedidos de libertar todos os movimentos pélvicos que envolvam a abertura das nádegas e maior exposição do ânus. A postura geral do homem exprime sempre ‘ânus para dentro’. Como se houvesse um trauma coletivo de serem penetrados ‘por trás’ a qualquer instante.”
Ora, cá está – Abril é fazer a revolução por dentro, nas entranhas, nas mucosas, nos pontos de bloqueio. Nem todos perceberam isto. E na cama o prazer era, por exemplo, roubado às mulheres – “os homens só querem o prazer para eles” – diz uma personagem em “Prazer, Camaradas!”. E di-lo com uma genuinidade e uma candura que dá um frio na espinha. Aquilo que esta mulher fala, foi experimentado até à medula. A revolução não passou pela sua cama. Nem pela sua mesa. Ela é que tinha de fazer o comer. E cuidar das crianças! E coser os fundos às calças! E se fosse preciso apanhar a azeitona, colher o trigo, semear a batata.
Peter, o sueco, Óscar, o colombiano, estrangeiros que então eram cooperadores, viram logo nessas mulheres espíritos abnegados e sacrificiais, que ainda se consumiam de vestes pretas quando enviuvavam. Que desprazer, camaradas! E que tinham os homens a ver com a gravidez das mulheres sem rendimentos para criar os filhos que traziam nas barrigas? Às vezes muito pouco. A elas cabia-lhes andar de carroça ou beber borras de café, dizia-se que servia para perderem o feto. Ou o infanticídio: meter os filhos pela pia abaixo. Que desprazer! E, às vezes, eram as mulheres surradas e humilhadas. Não era desculpa legítima, mas os litros de vinho que bebiam no trabalho era combustível suficiente para acender a violência masculina:
– “Você deixa-se bater, Celestina?” – perguntava uma jovem, com estudos, vinda de fora para participar nos trabalhos da cooperativa da Torre Bela e – achava ela – abrir os olhos de quem toda a vida morara nas aldeias.
Respondia a Celestina: “O que hei-de fazer? Para onde eu é que hei-de ir?” e se pegasse nas minhas coisinhas e me pusesse a andar “a aldeia ainda ficava contra mim”.
Abril era os homens levantarem o prato da comida para lavar. Porem-se em pé e irem até ao lava-loiça com o prato e colocá-lo lá, tão simples quanto isto. Abril era lavarem os pés sujos no exterior da casa para não sujarem o que as mulheres tinham limpado no interior. Abril era, se fosse preciso, formar uma comissão dos pés sujos, para pôr ordem na situação de sujeira avassaladora provocada pelos homens, como se vê no filme”Prazer, Camaradas!”.
Abril é uma mulher a dizer hoje sobre o seu marido, em catarse absoluta: “Aquele urso, não me deixou fazer o curso na Cruz Vermelha e eu até tinha boas notas. Queria andar na boa vai-ela, à vontade! Estava com medo de ter de tomar conta dos miúdos, enquanto eu fizesse o curso, e o urso fechou-me aqui nesta prisão”. A mulher falou-me assim de porta entreaberta em Aveiras de Cima, quando eu pesquisava para “Prazer, Camaradas!”. A mulher queria ser enfermeira e nunca o foi.
Uma nuvem de odores desceu sobre as aldeias, não há dúvida sobre a fonte destes odores, “erva” talvez; as estrangeiras só de olhar já beijam, os estrangeiros só de caminharem às vezes são um insulto, mas eles trazem teatro, música, fotografia, livros, reuniões da comissão de trabalhadores à noite, e prometem a liberdade, a libertação. Diz José Rabaça, um dos entusiasmados alfabetizadores nas cooperativas: “Há sim toda uma cultura a descobrir. Uma cultura sã, uma cultura que liberta e faz viver, uma cultura popular!” E diz Camilo Mortágua, um influente cooperador da mais famosa das cooperativas, a Torre Bela: “Não queremos só mudar as relações de trabalho, entre quem manda e quem executa, mas as relações entre as pessoas”. Que prazer, Camaradas! Ficávamos no nosso torrão aqui orgulhosamente sós, se não viessem portugueses exilados e citadinos, estrangeiros de várias europas, implodir as nossas certezas e baralhar as nossas convicções. Alguns deles estranham-nos e entranham-nos. Diz Mick em “Prazer, Camaradas!” que estes novos portugueses “abrileiros” vem logo de lá com abraços e cumprimentos calorosos Camaradas, Comrades, Camaradas! Venham vocês também!
Antestreias de “Prazer, Camaradas!”:
21 de abril – Cineclube de Santarém
22 de abril – Cineclube de Viseu
23 de abril – Cineclube de Far
24 de abril – Cineclube de Évora
Estreia nos cinemas a 20 de Maio.