O filme de suspense da mexicana Alejandra Márquez Abella atualiza o género western ao mesmo tempo que explora a masculinidade como performance, num thriller paranoico de perder o fôlego que é a melhor coisa vista em Berlim.
Todos os anos, um dos passatempos favoritos da imprensa que cobre a Berlinale é se perguntar porque determinados filmes não estão na competição principal do festival. Claro que definir o que é “um filme de competição” num festival com escolhas tão arbitrárias na sua seção principal pode ser tarefa complicada. Mas acreditamos que El Norte Sobre El Vacio, que passou discretamente na paralela Panorama, é um forte candidato para o cargo.
O poderoso terceiro longa de Alejandra Márquez Abella empresta o seu título dos versos bíblicos do Livro de Jó [26:7] “Ele estende os céus do norte sobre o espaço vazio; suspende a terra sobre o nada” e é como se estes versos apocalípticos fossem o prenúncio de quem pretende filmar o fim do mundo.
Na história do filme, o rancho de Don Reynaldo (Gerardo Trejoluna) no estado mexicano de Nuevo Leon, perto da fronteira com o Texas, é centro da narrativa. É ali que tudo acontece, é ali que a natureza selvagem vem reclamar a sua terra. Mas Don Reynaldo está no controle. Ele é o patriarca abastado que constantemente é o centro das atenções nos eventos sociais com a sua extensa família. Dos empregados aos amigos cowboys, Don Reynaldo é respeitado por todos e visto como uma certa figura lendária na região. Tal qual faz o cowboy de Jane Campion sobre a figura de Bronco Henry em The Power of The Dog, Don Reynaldo nunca perde a oportunidade de contar suas histórias, quase mitológicas, dos homens que fizeram aquela terra. Como na que conta sobre o pai, de quem herdou o rancho, que com uma espingarda na mão enfrentou um puma selvagem num duelo em que ambos reclamavam autoridade sobre aquele espaço.
O filme da mexicana é quase como se um Hitchcock tivesse sido realizado por Carlos Reygadas. E dizemos isso com uma certa culpa pela comparação; não só porque o filme de Abella explora as raízes de uma cultura patriarcal e corrompida por homens, mas por que a sua atriz principal Paloma Petra (uma interpretação poderosa no papel de Rosa) desaprovou a comparação com o compatriota, vocalizando o desagrado num tweet e sendo apoiada logo em seguida pela realizadora.
Claro que a irritação com a comparação é compreensível, especialmente nos tempos atuais em que mais realizadoras mexicanas estão tomando os espaços de uma indústria que ainda é dominada por homens. Mas também porque ela é um paradoxo, pois Abella percorre os mesmos caminhos trilhados pelo conterrâneo Reygadas, especialmente no seu último filme, Nuestro Tiempo, onde ele dissecava a masculinidade ferida de um cowboy em crise.
Também é impossível não pensar em Hitchcock, e em especial em Intriga Internacional naquela sequência inicial fabulosa de El Norte, em que os protagonistas sob o silêncio ensurdecedor da paisagem árida e despida de Nuevo Leon, aguardam por uma ameaça que pode aparecer a qualquer instante. Mas aí quando de repente um truque de focagem toma conta do ecrã, o qual só iremos compreendê-lo por completo mais tarde, é o momento que Abella nos informa que o filme ali é dela. E assim, segue nos guiando sob uma elegante e ameaçadora narrativa, acompanhada por uma constante música que trabalha o suspense e o desconhecido, atualizando o western e criando algo verdadeiramente original.
El Norte Sobre el Vacio é sobre muitas coisas, mas é essencialmente um filme sobre indivíduos que estão enclausurados em papéis de género rígidos e imutáveis, definidos pela performance de uma identidade em conflito. Assim como Kelly Richardt em First Cow, Abella parece querer investigar a masculinidade dos seus cowboys e sugerir que a virilidade de Don Reynaldo não é só definida nas suas relações com o sexo oposto mas principalmente nas relações com outros homens.
Dito tudo isso, vamos logo ao que interessa: se nada acontecer até o final desta semana, quando o festival de Berlim chega ao fim, a história de cowboys mexicana é o grande filme da edição 2022 da Berlinale.