25 de Abril

«Falling – Um Homem Só» – Sobre os filmes honestos, mas sem vida interior

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Com “Falling -um homem só”, Viggo Mortensen decide dar um passo para o outro lado da câmara de filmar e tomar-lhe as rédeas. O filme foi também escrito por si, naquilo que é um drama familiar autobiográfico onde Mortensen traz até à superfície algumas das suas memórias que retratam uma paternalidade bastante tensa e conturbada.

John Peterson (Viggo Mortensen) é um homem gay, de meia-idade, que tenta lidar com a profunda homofobia do seu pai Willis (Lance Henriksen), cujo avanço na velhice começa a trair a sua lucidez.

A questão essencial do filme parece residir no diferencial entre a honestidade e o coração que se pode colocar dentro de uma história de tom autobiográfico e íntimo de um autor e a sua transposição cinematográfica. A verdade é que, nesta transposição, um autor pode conseguir dar um coração pulsante a uma história que lhe é alheia, e o contrário também poderá acontecer: não sentirmos a pulsação cinematográfica de uma obra baseada numa história honesta, escrita com todo o sentimento do autor. Quer dizer que não basta escrever com o coração, é preciso um certo artesanato cinematográfico para que se consiga fazer sentir esse coração.

Se assim é, talvez seja necessário pensar como um filme ganha vida e se consegue descolar do movimento estritamente narrativo para começar a transpirar os seus movimentos interiores, mais escondidos, mais sensíveis, mais misteriosos. Em “Falling” senti que o filme não conseguiu descolar, mesmo nos momentos em que ele parece atingir, tal como um avião em pista, a velocidade certa para poder sair do chão.

No cinema são os limites que, ou confinam o filme ou o libertam. É verdade que o limite do plano e o momento do corte parecem-me, cada vez mais, os pontos essenciais definidores da vida de um filme; porém os limites não conseguem por si só uma expressão plena caso o cineasta não consiga fazer uma incursão até às profundezas da interioridade fílmica. Não foi por acaso que Bazin fez a apologética do cinema realista, quando percebeu que a profundidade de campo de um plano juntamente com a sua duração conseguiam criar essa brecha ontológica onde o filme se abre ao real e ao tempo.  Por outro lado, um cineasta como Bresson seria um antípoda dessa abertura ao real, não deixando abrir demasiado os seus planos para os espalmar com o mínimo de realidade que neles colocava. Mas, o que resolverá este paradoxo entre os cineastas que trabalham os limites da imagem de formas tão distintas?

O conceito de raccord sempre foi colocado ao serviço de uma maior eficácia da progressão do filme. Mas a verdade é que o raccord sempre foi pensado como continuidade exterior: numa montagem mais sincopada seria este que garantiria que todos os movimentos entre planos preservariam a sua melhor sensação de continuidade. Por um lado, os movimentos dos actores nas entradas e saídas de plano; ou então a tonalidade de coloração do filme; ou as transições sonoras entre planos; ou o tom da iluminação que perpassa o todo do filme. Assim, o raccord apontaria sempre para aspectos exteriores, para movimentos exteriores. Embora seja inegável a necessidade que um filme tem de manter todos estes componentes em continuidade para garantir a sua fluidez e ritmo, a verdade é que uma dimensão ficou sempre afastada, a interioridade.

Robert Bresson definiu o cinema como “movimento interior”. Embora possa assustar o tom enigmático e profético da declaração, a verdade é que Bresson parecia apontar, com esta definição de cinema, para essa interioridade essencial que o cinema sempre havia negligenciado para se deixar levar pelas influências das técnicas teatrais, que se focam nos movimentos exteriores. Para que essa essência cinematográfica pudesse ser alcançada seria necessário deixar a superfície exterior do filme para começar a sentir o que dentro dele se vai entreabrindo, vislumbrando, sentindo. O movimento interior apenas se alcança com mais um raccord, este que já não se ficará pelos movimentos exteriores, mas será antes um raccord do interior. Este raccord fará a ponte entre a vida interior do filme e a vida interior das personagens. Temos de perguntar em que ponto do filme o cineasta conseguiu tornar sensível, ao mesmo tempo, a vida interior do filme, os seus ritmos, o seu pulsar, e a vida interior das personagens, a vida interior das suas almas?  Seria este raccord que resolveria o paradoxo entre o realismo e o formalismo, entre os cinemas que abrem os planos para que o real possa ganhar uma força de presença e os filmes de teor mais abstracto, onde o fechamento do plano é mais comum e a montagem é mais fragmentária. O raccord do interior garante que não será o aspecto exterior, a maior ou menor quantidade de cortes da montagem; ou uma maior ou menor profundidade ou achatamento do campo dos planos que ditará uma determinada essência cinematográfica, mas antes a presença de movimentos interiores que em certos momentos do filme se tornam sensíveis para nós.  Assim como Tarkovsky imprimia um ritmo no movimento interior do filme até que dele transpirassem pedaços de tempo vivo, Bresson, com uma estilística absolutamente distinta conseguia atingir a mesma essência, quando da relação estabelecida entre imagens e sons transpiravam os movimentos interiores das personagens.

Esta excursão teórica serviu para apresentar este conceito de raccord do interior e como apenas este consegue dar a sentir a essência do movimento interior. Voltando a “Falling”, o filme não descola uma vez que em nenhum momento consegue dar a sentir essa interioridade fílmica que faria transbordar de dentro de si os acontecimentos sensíveis. O seu movimento é eminentemente narrativo e os limites dos planos são os limites da representação, por sua vez, os limites da representação tornam-se os limites do filme. No meio deste movimento seria preciso sentir que algo irrompe para além dos limites da representação, não como o outro lado da representação, ou apresentação em carne de uma alteridade, mas como esse movimento narrativo soltaria uma nova camada de movimento vinda do interior, como um fenómeno de superfetação da representação que trouxesse para fora algo mais que existiria dentro de si.

Assim, por mais esforço que Vigo Mortensen e Lance Henriksen coloquem nas suas interpretações, elas parecem bater sempre no mesmo limite que acaba por confiná-los na superfície da forma fílmica em vez de os fazer transbordar. Em alguns momentos vemos a tentativa de transbordamento através de um escalar da tensão entre as personagens, mas mesmo esse clímax não consegue ainda trazer à tona os movimentos da vida interior das personagens. Embora Mortensen fosse inteligente na forma como dinamizou o filme para ele progredir até ao momento do clímax, ao colocar a sua personagem numa constante postura blindada, calma e compreensiva e o pai numa constante e repetida torrente de ataques e provocações, esse contraste acaba por não ganhar a força suficiente, uma vez que os elos e as relações cinematográficas interiores não teceram os seus fios para que esse clímax espoletasse desde dentro e não apenas por um esforço de exteriorização pontual levado a cabo pelos actores.

Não questionando a honestidade que Mortensen colocou na sua história, o filme em si não consegue extrair mais vida do interior do movimento narrativo. E por muito que este siga o seu caminho, aquilo que ele contém dentro poderá até aparecer, mas nunca abrir-se em flor perante o nosso olhar, uma vez que este florescimento necessita de uma força orgânica interna que faça o filme mover-se desde dentro. Não basta contar ou sentir o movimento de uma história bem intencionada, é preciso também forjar-lhe, no seu interior, um coração cinematográfico.

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«Falling – Um Homem Só» – Sobre os filmes honestos, mas sem vida interior
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