“Eu sei que o que quer que digas deve carregar nem que seja um grão de verdade,
simplesmente porque foste capaz de dizê-lo”
“Globo de Prata” (Na Srebrnym globie) é um filme do realizador polaco Andrzej Zulawski, que estreou em 1988, no entanto, este teria sido lançado muito mais cedo, não fosse o regime comunista a ditar o término das gravações, em 1977, e a destruição de todo o material relacionado com a obra (guarda roupa, máscaras, etc.). Zulawski, quando o seu país se libertou do regime de censura, voltou à Polónia e montou o que tinha filmado (80%), substituindo os restantes 20% com imagens da Polónia moderna acompanhadas de um voice over do próprio, a explicar o que teria sucedido, fossem possibilitadas as condições para terminar este Globo de Prata.
Narrativamente pode-se dividir o filme em duas partes. A primeira, começa com a descoberta de um artefacto, trazido por um grupo de caçadores a dois cientistas, que descobrem que esse objeto é uma espécie de filme, que mostra a tentativa de colonizar um novo planeta, um substituto da Terra. Essa tentativa começa mal desde a aterragem, onde apenas três astronautas sobrevivem: Martha, Jerzy e Piotr. Jerzy morre aquando uma batalha, onde a sua povoação é atacada por sucessivas explosões; Martha morre a dar à luz, e o único habitante da originário da Terra que resta é Piotr. Martha era uma mulher bastante fértil, e teve vários filhos que, relacionando-se entre si, criaram uma tribo. Neste novo planeta os seus habitantes envelhecem duas vezes mais rápido que na Terra. Jerzy que chega a uma idade avançada, é venerado e temido ao mesmo tempo, devido ao seu conhecimento que se revela quase divino e perigoso aos olhos dos descendentes de Martha. No final da sua vida, Jerzy decide regressar à nave em que chegou, e enviar o que gravou ao longo dos anos – o filme que é encontrado muito tempo depois da sua morte.
A segunda parte consiste na chegada de Marek, uma espécie de Messias profetizado há séculos, que viria do mesmo lugar de onde Jerzy veio. Este é posto a chefiar toda a povoação, remetida para o subsolo devido à ameaça de uma espécie chamada Sherns, que procriaram com as mulheres humanas de modo a gerar soldados metade pássaro, metade humano. Enquanto se dá a guerra, o realizador leva-nos à Terra, e ficamos a saber a razão pela qual Marek foi enviado naquela missão – para a sua mulher manter um caso extraconjugal sem impedimentos, com um colega do astronauta messiânico.
Um novo planeta, uma nova civilização, com a possibilidade de criar novas identidades, de se criarem leis que procurassem atingir o que é mais justo para todos, viver em harmonia, em sociedade – a hipótese de apagar tudo o que existe de mau na Terra. O objetivo podia ser esse, na teoria. Se assim era, o resultado não foi alcançado, de todo. Na verdade, o novo planeta tornou-se meramente numa extensão da Terra, ou talvez pior. No lugar da procura pela harmonia, pela verdade e pelo conhecimento, o que sucede é a busca pelo poder hierárquico primitivo, pelas intrigas, pelo assassínio e crime. Estará o cérebro humano de tal modo programado que não consegue fugir a estes conceitos? Está a humanidade assim tão corrompida, até ao ponto mais profundo da sua alma? Nem a chegada de um “profeta” altera isso – e aqui não pode deixar de se fazer uma comparação com a figura de Jesus Cristo, seja pelo facto de Marek sempre dizer que é “apenas um homem”, seja pelo facto da sua vinda estar profetizada, ou ainda pela maneira como acaba a sua expedição no planeta distante.
Verifica-se também a necessidade de criar figuras míticas, divinas, que servem como meio de adoração e justificam a perda da racionalidade. Os seres humanos parecem não saber viver com o facto da sua existência poder ser meramente aquela que presenciam, e nenhuma outra após isso e, tendo de se apoiar em si mesmos para subsistir, preferem procurar divindades a quem entregar a sua fé, a sua esperança e o seu amor, sem deixar quaisquer um destes elementos para o seu semelhante. Neste universo de Zulawski, prefere-se acreditar no que não está presente, no inatingível, em vez de procurar acreditar naquilo que se vê – uma característica inerente à natureza humana. Amamos sempre o que (ou quem) não temos ao nosso alcance, sonhamos com o dia em que vamos ter o que queremos, com tamanha intensidade e paixão que, quando esse desejo chega finalmente, ele é pouco prazeroso, e chega a provocar repulsa. A antecipação tem por norma o hábito de nos preparar para o desapontamento. Esta ideia é visível na chegada de Marek, que é adorado na sua ausência, mas não tanto, e cada vez menos, na sua chegada e estadia no planeta.