Eis que o filme começa com uma dança circular, o rodar de uma roda que é tão elétrica quanto é o efeito da força humana que a faz circular, que estranha e perigosa coisa de assim se fazer um contínuo círculo, por meter o pé no exato momento, e de manter a cadência que não esmorece, antes prossegue e prossegue, e quem mantém o ritmo não se atemoriza, mete e volta a pôr força e mais força, e salta quando lhe apetece, e volta a entrar no fazer do grande rodar quando lhe apraz. O grande rodar que Edward Abbott (Gonçalo Waddington) leva a cabo – esse Grand Tour pela Ásia, tão de hoje como do passado – é uma transposição desse círculo da Grande Roda com que o filme começa: um circular sem fim, uma linha que vai para lá, mas que sempre vai em círculo, roda de si mesmo, um caminho que leva para ali, mas que vai ter ao caminho de si mesmo, um mistério do ir e o de continuar , sempre em linha e na linha, olhando em frente e olhando para trás, no escrever de uma experiência que só a fuga pode explicar como a vontade de realmente querer ir para onde ainda não se foi, por mais que não se conheça ou possa conhecer, e pois então, entretanto, e tão só, viajar por aqui e por ali.
O teatro de marionetas: uma história a que sempre se retorna, é um mover da sombra na luz, as mãos abaixo, no semi-escuro acima só se vê um vislumbre de quem ali faz também um cinema ao vivo, um cinema vivo, que comenta e acompanha, é outra dança, é um mover ondulado, uma fineza de corpos não densos, está ali para a ele se voltar , não interessa que não se o compreenda, é um revolver que realmente interessa, faz parte da volta, porque é também uma volta, de um lado para o outro, e a câmara também vai e vem, e há-de voltar . É réptil? É dragão? Teatro para cinema, um outro cinema que vai estar em volta com o de Miguel Gomes, não será o único, um outro mais virá, mais transparente, ainda na luz pouca, mas mais fino, mais diáfano, imagem trémula e fugidia, a volta lá nos levará.
A chuva cai sobre Edward. Cinzento e água. Madeira e o desespero de quem só sabe que não quer o que tem que querer: a promessa que soube logo incumprida, porque nunca a quis cumprir, é pensar que dentro de alguns minutos ela ali desembarcará, as flores que estão na mão molhadas estão. Para onde ir do que para o fugir , ir na volta grande, a enorme fuga, ou então não é mesmo só isso de escapar , mas sim de só ir . Está ele a fugir , o nosso Edward, ou a só ir? Ir e ir … na volta grande da grande volta, que oriente esse, tão amplo para o pequeno burocrata, mas ele vai, entreguem-se a flores a quem com elas sorria e assim se vá…
Parte um: a viagem de Abbott. Entre mares e terras que são de tempo anterior mas que são vistas pelo agora. Tempos contrários, estranha conexão, palavra de um início de século outro e imagens de um outro século iniciado, junção de temporalidade que são uma só, elipse de décadas e décadas, viagens que não se vêem, mas que se falam, encenação da falta e da quebra, do elíptico a preencher com um cinema de quem vê, Gomes assim nos dá a escolha, não se vê a viagem, que se a imagine por quem a narra. A linha do comboio fica para trás, é o continuar da ida, é a linha de fuga ao contrário. É Edward que continua a fugir … e a linha do comboio que continua a ficar para trás…não fosse o preto e branco poderíamos estar no cinema de Wes Anderson? O que dirá Gomes acerca disso? Dois cinemas de viagens em comboio, sempre em continuação, em voltas, idas e paragens, pouco será mais cinemático, porque sempre em movimento, do que o comboio, do que essa máquina do mecânico, tal como a máquina de filmar , aqui em 16 mm, de outro século é a mecânica, e aqui não se trata – porque assim Gomes o afirma – do digital, aqui é o analógico que comanda, tal como em Anderson o é. A volta é decisiva porque assim se chama a si mesmo de regresso à máquina mecânica, esquecendo a máquina digital. O acelerado que se verá no filme, já na sua segunda parte ou volume, é referenciar o mecânico de um cinema que já se foi, mas que ainda não se foi, porque não quer ir, e há quem não deixe querer ir …Gomes e Anderson…homens de um cinema antigo a fazer dele um novo…em volta…grande…e em viagem de comboio. Mas que se trate do comboio de Gomes…que ele tomba e deita fumo. A selva está já ali. Edward encontra o sol e desenha. Poderia ali talvez ficar sentado, a desenhar todos os pássaros que pudesse encontrar , storyboards a filmar, imagens a registar.
Interlúdio: o teatro de sombras. História de bruxas, príncipes e princesas, corpos esguios e casamentos. Que cinema é a sombra sobre a tela…filma-se o cinema duas vezes: a máquina rola e a mão move-se, a panorâmica é um efeito de braço, não precisa de mais do que um mover preciso e vai-se e volta-se, e vai-se…e volta-se…que encenação em movimento, terá sido antes um travelling que aquela mão-braço tão precisa efetuou? Que se ouça a história, é conto do extremo oriente, é fantástico, é um pequeno contar que a este filme vem, e interessa, e quer-se saber sobre como acaba, é teatro e é cinema, é outra luz mais diminuída, mas que engaja, que chama e conta, e como é tudo acerca de contar os ires e vires que fazem as histórias pelas quais nos sentamos a ouvir …
De volta à parte de Abbott: é preciso continuar, sempre para oriente, sempre mais para lá, para as línguas que falam na terra que recebe, e quem acolhe tem direito a falar na sua língua, pois é essa terra-sua que é filmada, o registo é esse mesmo, documentação de um outro território, não é de estúdio que se trata, mas de luz forte e queimada, de luz fluorescente de café e barco, de rua e avenida, as motas que circulam e que se encadeiam umas nas outras, é dança estranha, como podem haver tantas motas a circularem umas com as outras, e a câmara regista-as assim, nesse dançar perigoso, a encenação do choque iminente que parece que vai acontecer mas que elegantemente se desvanece para outro…quem montou assim, bem o fez…porque uma cena de cinema que não avança nem recua, não interessa para necessidade narrativa, está ali porque tem que estar , é movimento de si mesma, é razão porque se fala, ainda hoje, da imagem-movimento…que se agradeça a Gomes e Churro por colocarem uma cena que está ali para ser só…cinema…mas o outro movimento tem que continuar , o de Edward…um outro comboio, geométrico, estranhamente geométrico, a entrar na embocadura de um conjunto de prédios, que arquitetura densa, repleta e de si repleta, cheia, desenhada, figuras dentro de figuras, espaços tomados a tudo quanto se possa tomar , só o grande rio pode abrir a imagem, e ao grande Buda parar outra vez, que outros cinemas já ali pararam, que se pare este também, e se filme essa imponência…e um outro filmar, sempre difícil, num outro local da volta do grande cinema: o Japão…não se pode filmar no Japão de uma forma que não seja japonesa, é entrever por entre a porta de que desliza, a chuva ou neve que cai lá atrás, que estranheza aqui também, o olho tem que saltar das personagens para esses flocos que caem a uma velocidade que não parece natural, mas que tão chamativa é…e que tão à japonesa fica filmado…e a viagem continua…para as florestas de bambu, linhas cortadas contra linhas cortadas, florestas escurecidas, e o esquecimento total, o fumar de ópio, vapor de um esquecer que depressa virá, e que da volta (ida) se fará um Edward sentado a dizer uma vez mais que foge, como sempre fugiu, do pequeno príncipe que falava um português que não parecia para ali chamado, de tudo o resto e da noiva com a qual não quer casar, e ali fica ele ali sentado…ele que fez a volta grande pela Birmânia, pelo Vietname, pela T ailândia, pelo Japão, pela China…que cine-diário de viagens foi o seu…e que estória foi a sua, a de uma ida que se tornou em esquecimento de uma não volta e que por lá ficou, presa no tempo de uma história que não foi continuada e que assim parou no destempo de uma fuga que daqui para a frente se vai esquecer .
Parte dois: a perseguição de Molly. História não tão de viagem, mas mais história como narrativa clássica, com a forma escorreita necessária e a personagem chamativa. Molly tem um riso peculiar , e é peculiarmente positiva, parece ela achar ou faz de conta que não acha que o noivo está, na realidade, a fugir dela, embora o saiba, e no fim o admita. Mas ela há-de continuar até ao fim, sempre nessa perseguição que é do domínio da ação, e a sua parte é mais dinâmica, mais energizada, é sempre por alguns minutos, poucas horas ou um dia no máximo, que ela não consegue apanhar o seu noivo fugitivo. A mesma ida, mas uma outra forma de se inscrever no espaço e no tempo: se a ida-fuga de Edward era por si só fugidia de uma alma mais fraca do que imanente e dada ao avanço – ele que sempre foi em frente, no entanto – a ida-demanda de Molly é uma de alguém que assume uma imanência e inscrição na vida, a alma é forte, é obstinada, não quer saber a não ser de quer ir realmente em frente – e ela foi sempre para diante, apesar de tudo – e em comparação com a sua estadia nos mesmos espaços que Edward anteriormente esteve, a sua presença foi sempre mais de inserção, questionamento e atitude resolutiva do que o seu noivo fugitivo. Junto ao mesmo comboio caído, Molly procurou, mas não o encontrou. Conversou, afirmou a justeza da sua perseguição (que se chame procura, a partir de agora), e continuou. Não houve a contemplação (como o Edward o fez), mas sim o discurso da ação, a sua preparação e o seu encetar. Molly é pura força, imagem-força de quem sabe que está numa procura vã, mas mesmo assim nunca a deixará de continuar, por mais que também vã seja a continuada justificação da mesma. Presa a todos, ela arrasta-os, por entre os corpos que a teleobjetiva vai tomando ao longe, a compressão e a linha que segue titubeante, a câmara quase que a não consegue acompanhar , mas é ela que segue, sempre segue, com velocidade, com um tremor muito próprio, com uma razão muito própria. De que doença ela padece, nunca se fica a saber , o desmaio é febril, o descanso tem que ser prolongado (e mais o outro foge), é a urgência de quem tem um tempo finito para viver? É a sua última corrida, uma que tem que ser na forma de uma viagem vivida até ao fim? A ida-perseguição-que-se-chama-de-procura é a propósito de uma maleita que, aflitiva e de febre suada, a leva, teimosa e obstinada, pelo rio no qual o barco só pelo corpo pode ser puxado? Tem ela que ir até onde não possa mais ir? Que se acompanhe Molly, e ao rio se voltará.
Interlúdio outro: a rapidez do “undercranking” , o tremer da imagem, a película energizada, os corpos que sobem uns sobre os outros, a câmara que se move numa estranheza-da-tremura que é função da sua velocidade, do campo de visão baixo e de uma angularidade que distorce, é a mão que a segura, é a mão que a move, é o efeito analógico, é só com o filme que se o faz, é só com a câmara que ele se prepara para ser outra cadência quando outros o verão – filme de sala que será menos tremulante do que este que filma os corpos em movimento – mais à frente, num outro tempo, de uma rapidez que é efeito para o olho e não se sabe que tanto foi, porque assim o quis, mecânica, como o comboio, como os tempos outros que eram tudo menos…numéricos…
De volta a Molly: a estadia na plantação – lugar de estúdio e um espaço de quase-onirismo – é a paragem no tempo da procura. É o assentimento, do contar de mais fábulas fantásticas, de almas que caem nas coisas, de um outro teatro feito de mãos e chapéus que tapam as caras, é do estar entre as folhas grandes e as flores que se regam, é o cheiro dos muitos cheiros, da humidade que mais aquece e enevoa, é o extremo que tanto ao europeu chama – como as imagens parecem, aqui e acolá, lembrar a mesma névoa húmida do “Apocalypse Now” de Coppola – é a hipótese de ficar para Molly e a decisão de ir e continuar, apesar de tudo, não irá sozinha, terá a companhia de Ngoc (Lang Khê Tran), a que conta histórias e que tem uma força feita de graça e que tanta e mais energia traz ao ir-procurar , leveza que levanta, calma que adoça, riso que rega, corpo que se eleganta. A procura terá que navegar, pelo rio dito impossível de subir, arrastado terá que ir, navegado de vez em quando, até que mais não possa, mais não se consiga e só se acabe quando se desaguam os corpos à margem, ainda alguns vivos, os outros perdidos. E treme Molly, mas continuará, mesmo assim.
Último interlúdio: as faces pintadas de negro, os bonecos na mão, movem-se em ondulação também, teatro à luz do dia, mais aberto e brilhante que os outros, é uma luta entre movimentos, dois grupos de corpos, dois corpos em grupo, sobem-se os braços, baixam-se de seguida, espetáculo de rua, de jardim, mais um que se junta aos anteriores. É sempre a performance, o fazer mover a roda, a marioneta, a sombra, é o cinema que já estava antes do cinema, e neste cinema de Gomes, assim são referidos e adicionados, síntese de artes, pela artes do corpo e da mão feitas. E o jogo de Mahjong, o que foi: um teatro de movimentos de mão, deslizes de peças, uma performance também? Assim o parece, um pequeno documentário dela, elegante no mover das coisas que se movem, pois se assim se joga, quem assim o veja, a todos quantos a lhes apraza antes o dominó…
O fim: os ditos assaltantes de um estrangeiro têm os seus pescoços presos numa tábua…esperam pelo cumprir da condenação, o nevoeiro é forte, é nevoeiro de cinema, tudo tapa, faz silhuetas, é o cantar de um lamento, é o aparecimento de Molly, posta contra o fundo nebuloso, é o desenho de um corpo que foi e seguiu, até onde mais não tem do que o branco opaco que já não permite ir mais além. O nevoeiro é o fim da viagem, é o fim da procura, é o fim da narrativa, para onde pode ela ir? Porque morre Molly, porque entristece tanto esse seu terminar? Não se quer assim, não. O filme termina e sai de si mesmo, a luz que cai sobre o corpo morto de Molly ressuscita-a e ela assim sai, para fora do filme, espera-se que seja a Molly que continue, para lá da borda do plano, para onde tenha que ir e continuar (porque de Edward ela já nos fez esquecer)…