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“If We Burn”, de James Leong e Lynn Lee

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É curioso como nesta era digital, onde o ciclo de 24h de notícias nos pode levar a crer que a informação é partilhada mais convenientemente e rapidamente, perduram ainda regiões do planeta onde a informação que nos chega é deveras limitada. Os recentes protestos em Hong Kong são disso um ótimo exemplo, com a cobertura a limitar-se a uma visão superficial do impasse entre o estado chinês e uma população inteira em revolta, ou a reproduzir um discurso anti-china que prevalece nos meios de comunicação ocidentais. Como alternativa, apresentam-se os milhares de vídeos descarregados em plataformas como o YouTube, sempre descontextualizados e sedentos de uma interligação cuidada e pensada.

Perante esta falta de compreensão séria do que de facto está a acontecer no pequeno estado asiático, o Festival de Roterdão decidiu ser o primeiro evento cinematográfico a mostrar como o cinema é um veículo privilegiado para preencher o gap deixado pelos noticiários e clipes individuais com um ciclo exclusivamente dedicado ao conflito e intitulado: “Ordinary Heroes: Made in Hong Kong”. O programa incluiu uma grande variedade de obras, de clássicos como “Made In Hong Kong”, de Fruit Chan, a uma serie de curtas-metragens diretamente e indiretamente ligadas aos protestos do momento. Mas de todas as obras exibidas, talvez a mais completa e eficaz terá sido a estreia mundial do documentário “If We Burn”, de James Leong e Lynn Lee.

“If We Burn” apresenta-se como uma tentativa de dissecar um dos momentos chave dos últimos meses: a invasão do parlamento local por parte de uma significativa multidão de manifestantes. No início, assume-se de forma bastante convencional, com vários elementos dos protestos, de cara tapada, a explicarem como se iniciaram os protestos e o caminho percorrido até à invasão de 1 de julho de 2019. Estabelecido o contexto, o filme revela-se como uma crónica minuciosa dos acontecimentos do dia, compilando imagens capturadas por vários intervenientes, que nos mostram passo a passo como um protesto pacífico se transformou numa expropriação popular de um dos espaços mais simbólicos do entrosamento da filosofia de Pequim: “Dois Sistemas, Dois Estados”.

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No processo descobrimos diferentes perfis de figuras essenciais, cada uma a desempenhar uma função muito concreta. Em primeiro lugar, temos alguns deputados locais, cujo objetivo principal é garantir a segurança dos manifestantes e intimidar a polícia, ganhando, pouco a pouco, território e espaço de manobra, mesmo que, por vezes, se vejam frustrados pela incapacidade de impedir algumas ações dos manifestantes e policia. Em segundo lugar, temos vários cidadãos que motivados pela força da multidão, veem-se encorajados a partilhar ideias que em condições normais guardariam fechadas a sete chaves, na sua tão tradicional contenção. Temos ainda personagens como Brian, um estudante cuja calma e ponderação o faz destacar e elevar-se a líder de um movimento sem figuras públicas, posição que o obriga ao exílio em Seattle no final da invasão. E, por ultimo, somos confrontados com uma multidão de jovens encapuçados que coexistem como uma só identidade, sempre fiel e extremamente organizada, como se de uma fábrica se tratasse (a continua chegada de guarda-chuvas/escudos de batalha à frente através de cordões humanos é impressionante).

Ao longo do dia, todos estas personagens sofrem uma mutação de mentalidade, tornando o seu espírito individual numa expressão coletiva que vai muito além do slogan: “Se ardermos, vocês arderão connosco”. Chegados ao parlamento propriamente dito, o deslumbre é total. Enquanto uns tiram fotografias como se de uma visita turística se tratasse, o resto da multidão fica em suspenso quando um manifestante se recusa a abandonar o hemiciclo. A decisão coletiva de o retirar dali enquanto todos gritam “Chegamos juntos, partimos juntos” é um sinal vital da maturidade de um movimento que conhece bem as consequências da insurreição em território controlado pelo Partido Comunista Chinês.

A natureza das imagens não nos permite um distanciamento neutro, nem a uma visão meramente racional dos acontecimentos. Não é esse, de todo, o objetivo. Pelo contrário, ao levar-nos até à “frente de batalha”, ao assistirmos continuamente ao embate de ideias, “If We Burn” torna-se numa lição de vida.

Não é todos os dias que temos a possibilidade de assistir a uma revolução quase em direto, de ver as diferentes forças de um movimento de massas a descobrirem-se a si próprias, a aceitar o seu potencial e a resistir corajosamente a um status quo tão tradicionalmente agressivo. Nesse sentido, “If We Burn” é muito mais do que uma crónica, é um manual de boas maneiras para uma revolução civilizada, organizada e respeitadora de todas as perspetivas. Um guião para a mudança numa realidade extremamente opressiva, fechada e limitada, transformando-se por isso num filme profundamente humano, “perdido” na linha que separa o desespero e a camaradagem.

E é exatamente neste tom que este filme extremamente emotivo encerra, com uma concentração acima de tudo de mulheres de meia-idade, que se juntou em apoio à revolta, descortinando pontos de encontro entre as ânsias individuais de cada um e a sede generalizada por liberdade para toda uma comunidade. “If We Burn” é um filme absolutamente fundamental e arrisca-se, merecidamente, a ganhar um lugar de destaque no panorama do documentário em 2020.