(O desmoronar d’) A incongruência e (d’) o preconceito inerentes e intrinsecamente presentes na Academia.
Chegou finalmente o dia em que verdadeiramente temos uma bela obra de arte a colocar em causa os critérios e a forma como estão concebidos os prémios que finalizam a época cinematográfica. “Parasitas” venceu e venceu bem. E fez com isto relembrar umas quantas outras injustiças praticadas com filmes “estrangeiros”, agora denominados de internacionais: a ausência da nomeação de outros filmes sul-coreanos para o Óscar de melhor filme, na altura, “estrangeiro”, como “Memories of Murder” (2003), “Oldboy – Velho Amigo” (2003), “Eu Vi o Diabo” (2010), ou “A Criada” (2016); a ausência da nomeação para o Óscar de melhor filme para “Uma Separação” e ainda as possíveis vitórias de “A Vida é Bela” (1997) ou “Roma” (2018) para o Óscar mais aguardado da noite e do ano.
Isto faz-nos questionar a importância que se tem dado aos filmes, agora internacionais, por parte da Academia. Existe uma incongruência que acarreta uma atitude de supremacia por parte daqueles que se entendem como os senhores do cinema.
Cai por terra a ideia de que a cerimónia se realiza para galardoar aquilo que de melhor se faz no cinema norte-americano durante o ano, com a existência de uma categoria, outrora denominada “Filmes Estrangeiros”, para eleger o que de melhor se fez durante esse mesmo ano no resto do mundo que não no país do Tio Sam. E até aqui estaríamos bem, se não se juntasse a outras categorias filmes realizados fora dos Estados Unidos. Com isto, passa-se então a considerar os Óscares não como uma premiação do cinema norte-americano, mas sim uma premiação do cinema em geral. E, como anteriormente, até aqui tudo bem. Começa a descambar quando se criam duas categorias para eleger os melhores filmes, numa delas, os melhores filmes americanos e, noutra, os restantes. E continua a descambar quando se incluem filmes internacionais, na categoria dos melhores filmes, pensados antes, norte-americanos. E aí deixam de ser os melhores filmes norte-americanos e passam a ser os melhores filmes, podendo englobar toda e qualquer obra realizada em qualquer ponto do globo. Aqui chega-se ao patamar mais alto da supremacia da Academia que até à última gala sempre considerou os seus filmes os melhores.
Isto originou que muitos filmes internacionais ficassem de fora e não só da categoria entendida como principal, como também da destinada aos filmes que não norte-americanos. E muitos deles provenientes de fora da Europa. E sobre os sul-coreanos há muito de bom a dizer. Na sua maioria, no que toca aos bons filmes, são totalmente fora da caixa. Com argumentos surpreendentes, inesperados, sobre temas atuais, fortes, as histórias são sempre singulares e extraordinárias.
Existe em doses generosas aquilo que normalmente falha nos filmes norte-americanos e que, quando não falha, olha-se para a nacionalidade dos realizadores e constata-se que não são do país de origem do filme. Trata-se do não ter medo de arriscar, de ultrapassar o limite do considerado “correto” e do que é mais cómodo. E, por não ser hábito dos filmes, e das gentes que trabalham no cinema norte-americano, é pouco tido em conta pela Academia.
É exemplo disso as obras de um magnânimo produtor, realizador e argumentista norte-americano, Stanley Kubrick, que por uma única vez arrecadou uma estatueta dourada e não numa das categorias principais. Filmes como “Dr. Estranhoamor” (1964), “Laranja Mecânica” (1971), “Nascido Para Matar” (1987) e “The Shining” (1980), autênticas obras-primas, não tiveram o prazer de receber qualquer prémio.
Voltando aos filmes internacionais e, mais concretamente, aos do sul da península da Coreia, ultrapassando a “enorme” barreira de apenas uns centímetros de legendas, elucidada há uns dias por Bong Joon Ho, há um incómodo muito grande no ceio da indústria norte-americana, no que diz respeito ao idioma. Habituada a filmes franceses, italianos, espanhóis e até nórdicos, o problema dos coreanos é mesmo esse, não ser europeu. Este é um preconceito temido que faz com que haja uma espécie de repulsa ao que é diferente, uma recusa em abrir horizontes, de ficar a conhecer o desconhecido.
Sobre o que se passou na última gala, no cômputo geral os prémios da noite mais glamorosa do ano foram bem entregues. Havendo uma altercação ou outra, nomeadamente na categoria de melhor realização, onde qualquer um dos cinco nomeados poderia ganhar, ou até mesmo na de melhor argumento original, onde “O Irlandês” foi ultrapassado, e não sabendo até que ponto bem, por “Jojo Rabbit”. Lágrimas são derramadas por ver o saco cheio de nada que “O Irlandês” leva para casa, porém com a consciência de que não está de todo mal (talvez com a exceção de um ou dois prémios). Nem mesmo os milhões gastos nos efeitos especiais chegaram para convencer a Academia.
A Disney continua a dominar, ficando a Netflix uma vez mais para trás, que viu o seu filme de animação ser destronado pelo quarto capítulo de “Toy Story”. E aqui, a plataforma de streaming talvez merecesse levar o prémio para casa por “Klaus”. Isto leva-nos a evidenciar uma outra interrogação que se prende com o facto de até onde deverá ir a soberania da Disney no que toca à animação. Parece sentir-se dona e senhora do mundo. Depois de inúmeras aquisições, a companhia criada por Walt Disney está cada vez maior, vendo apenas na plataforma de streaming Netflix e na produtora, que apesar do enorme potencial, não o tem aproveitado da melhor maneira, sendo a sua última obra de destaque “O Filme Lego”, a Warner Bros. os concorrentes diretos.
Em suma, a Academia vai, com o passar dos anos, começando a acertar cada vez mais. Todavia, acaba, praticamente todos os anos, por meter o pé na poça, numa poça bem funda, onde a lama toma as características das areias movediças, como nos casos de “Moonlight” (2016), “Green Book” (2018) e muitos, muitos outros. Felizmente, este ano, isso não aconteceu.