«Jessica Forever» – Distopia vazia de conceito é um grande tiro no pé

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“Então mas e ela faz a ponte do nada?” comentava um espectador à saída da sala. Referia-se à cena em que um jovem entrega uma carta de amor a uma rapariga que conheceu recentemente. Ela lê a carta, afasta-se como se estivesse a ir embora, mas volta atrás para se deitar no chão e fazer uma ponte e uma vela. Está bom.

Jessica Forever é a primeira longa-metragem dos franceses Caroline Poggi e Jonathan Vinel, que também escreveram o argumento do filme.

Conhecidos no circuito internacional pelas suas curtas – umas realizadas como dupla, outras individualmente –, os cineastas atingiram notoriedade em 2014 ao vencerem o Urso de Ouro para Melhor Curta-Metragem, no Festival de Cinema de Berlim. A curta premiada (Tant qu’il nous reste des fusils à pompe) e nove outras da sua autoria são objecto de retrospectiva na secção Foco Silvestre do Indie Lisboa 2019.

A 16.ª edição deste festival traz a Portugal pela primeira vez “Jessica Forever”, que concorre na Competição Internacional. O filme teve a sua estreia mundial na secção Platform do TIFF 2018 (Festival Internacional de Cinema de Toronto), onde não venceu. O júri, composto pelo realizador húngaro Béla Tarr (Kárhozat, Sátántangó), distinguiu ao invés “Cities of Last Things do taiwanês Wi Ding Ho.

“Jessica Forever” insere-se no género da distopia juvenil, muito em voga na última década. O filme assemelha-se a títulos como “Os Jogos da Fome” (2012), “Divergente” (2014) ou “Maze Runner” (2014), mas em versão amadora e low-budget. O cenário apocalíptico desta feita é um mundo no qual o Governo persegue e assassina órfãos criminosos. Mais não posso dizer, porque a verdade é que o filme não mo permite. O argumento não faz qualquer esforço em enquadrar o enredo no cenário distópico. Ao público não é explicado o porquê de tantos órfãos, o porquê de todos serem homens à excepção da sua líder Jessica, o porquê do Governo lhes ter retirado todos os direitos.

O peso do argumento na obra é algo que fica ao critério do realizador. Trata-se de uma escolha que resulta em filmes mais assentes na narrativa, como em filmes mais livres de trama – ou mesmo ausentes dela (as mais recentes incursões de Terrence Malick são um exemplo, particularmente o monótono “Cavaleiro de Copas”). Ora o problema de “Jessica Forever” é que o género distópico exige um conceito. A falta de premissa não é uma opção. Se o filme que nos é apresentado é efectivamente uma distopia, há que construir o mundo no qual se desenrola a acção.

À falta de conceito alia-se um conjunto de personagens desinteressantes e mal escritas. Os órfãos pouco se diferenciam de meros rufias, mas rufias ternurentos, atenção! São-nos mostrados a beber Capri-Sun, a comer barras de chocolate, a dormirem a sesta juntos, e preocupados se encontrarão os seus cereais preferidos no supermercado. A infantilidade é de tal forma extrema que a ideia de que este grupo constitui uma Resistência ao Governo é risória.

A personagem principal também não se escapa de uma péssima caracterização. Com uma indumentária que evoca Charlize Theron como Furiosa em “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015), Jessica é pintada como um anjo-da-guarda que resgata pobres jovens da vida do crime. Contudo, a alternativa que lhes propõe é a de assaltarem mansões luxuosas e viverem rodeados de armas. Crime organizado é melhor do que crime individual – é a lição que o filme involuntariamente prega. Acresce ainda que o público nunca vê a tal faceta líder de Jessica. As suas poucas intervenções são para pôr termo a conflitos entre os jovens e para lhes dar abraços. É revelador que a exploração da personagem titular seja inexistente, mas que haja espaço no filme para uma cena em que Jessica vai às compras de motas e jet skis.

A fotografia é um elemento de grande relevância no cinema distópico, dado que ajuda a estabelecer o ambiente apocalíptico do filme. Não é o caso em “Jessica Forever”. Aqui faz sempre sol. Mais parece que aquele grupo de jovens está de férias de Verão no Algarve do que a fugir de um Governo assassino.

A cinematografia do filme peca também por ser manifestamente desinspirada, sendo poucos os frames interessantes. Na memória fica guardada uma chuva de pára-quedas e uma árvore de folhas brilhantes, pouco mais. De resto, o filme aparenta ter sido filmado com uso de um telemóvel.

Curiosamente, uma imagem marcante é a dos órfãos lado a lado, de braços levantados e armas em punho. A imagem só por si reflecte muito a fascinação dos cineastas pela violência, não fosse esta longa e a maioria das curtas precedentes odes à violência. Em “Jessica Forever”, todas as cenas de violência resumem-se a tiros contra drones mortíferos, controlados pelo Governo e que surgem perfeitamente ao acaso.

A primeira longa-metragem de Caroline Poggi e Jonathan Vinel não acrescenta nada ao género da distopia, nem à obra dos cineastas. “Jessica Forever” é um filme oco que não justifica a passagem que a dupla francesa fez das curtas para às longas. Talvez tenha sido de tanta arma que o tiro saiu pela culatra.

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