Em ano de crise o cinema português está a dar muita luta. Em quatro meses estrearam já nove longas-metragens portuguesas e de maneira geral o resultado é bastante positivo. Ganham-se prémios lá fora e o público de cá começa lentamente a interessar-se em ver cinema português. “Linha Vermelha” é mais uma bela surpresa do melhor que se faz de cinema em Portugal. Um documentário realizado por José Filipe Costa, vencedor do concurso nacional do IndieLisboa 2011, que pretende ser um estudo sobre o filme “Torre Bela”, do realizador alemão Thomas Harlan, feito no pós 25 de abril, durante o Verão Quente de 75.
Seria de pensar que para compreendermos as questões aqui analisadas seria preciso ver primeiro o documentário de Harlan. Ajudava bastante com certeza, mas Costa consegue explicar-nos o suficiente com este seu maravilhoso filme, “Linha Vermelha”. Penso que este filme tem pano para muitas mangas, podendo-se falar de múltiplos temas, desde a história de Portugal, à história do cinema, como também sobre o papel do cinema, o papel da montagem, do som e da imagem. Podiamos falar de Eisenstein, Dziga Vertov e de Leni Riefenstahl ou de Estaline e Hitler. Enfim, é um daqueles filmes que quando termina, apesar de nos dar muitas respostas, levanta muitas questões, querendo nós ver mais e mais. Mas o filme tem apenas 80 minutos.
Centremo-nos no que realmente importa, para “Linha Vermelha”, que é revisitar o local da ação, os seus personagens e os seus protagonistas. Através de imagens do filme “Terra Bela”, filmadas por Harlan e a sua equipa, podemos conhecer o que foi realmente o PREC (Processo Revolucionário em Curso) e o que se perdeu e o que se ganhou. O PREC foi o período das atividades revolucionárias, que se iniciaram a 25 de abril de 74 e que terminaram em 76, aquando da aprovação da constituição portuguesa. O ano de 1975 foi o período mais empolgante, tenso e dramático deste processo, daí ser conhecido como o “Verão Quente de 75”. O alemão vem para Portugal filmar esses acontecimentos que se passaram durante a revolução (foram cerca de 100 dias de rodagem, de abril até agosto de 1975). É com imagens deste filme, “Torre Bela”, que vemos a “palácio” do duque de Lafões a ser ocupado, tal como a sua herdade; uma discussão sobre a quem pertence uma enchada; reuniões em praça pública onde todos falam ao mesmo temo e ninguém se entende, etc.
A diferença entre o que era ser-se pobre e ser rico é clara. Tal como quem tinha estudos e educação. O álcool era muitas vezes o caminho escolhido para muitas daquelas pessoas.
Aquelas pessoas foram e continuam a ser muitas vezes acusados de terem roubado e saqueado a mansão da herdade. Mas antes de julgar aquelas pessoas é preciso entender o contexto daquela época e por-se no lugar delas. Será isto um crime ou será isto sobrevivência? Durante o filme há algumas testemunhas que dizem que as pessoas tinham curiosidade, apenas queriam ver e tocar. Afinal de contas, para aquelas pessoas, não é todos os dias que podem vestir roupas finas e sentarem-se em cadeiras luxuosas. Era tudo novo, uma nova experiencia para todas elas e isso vê-se bem claro nas suas expressões. É sem duvida um dos momentos mais especiais do filme. É interessante que o realizador não mostra apenas a opinião daqueles que viveram isto, mas interessa-se também em saber o que pensam as novas gerações sobre este assunto, filmando uma turma de adolescentes durante uma aula de história, onde cada um dá a sua opinião.
Costa revisita através deste filme aqueles que viveram esse período, onde muitos foram felizes. Wilson Filipe é um deles e o herói de “Torre Bela”. O filme do Costa é narrado pelo próprio, quase como uma carta de despedida a Harlen, que faleceu em 2010 e Costa teve a oportunidade de o entrevistar. Mas é apenas a voz dele que ouvimos durante o filme.
Outro ponto importante deste filme é que Costa tenta perceber de que maneira Harlan interveio nos acontecimentos que pareceram desenrolar-se naturalmente frente à câmara. Foi um maravilha perceber como tudo se desenrolou e serve como um estudo, uma análise para estudantes de cinema. É através de entrevistas com membros da equipa de “Torre Bela” que entendemos o processo de filmagem deste filme.
É aqui que entra a questão – o que é a realidade? Qual é a força da imagem e do cinema? De uma forma simples peguemos no exemplo das fotografias que pareciam armas de fogo (canhões), mas que na realidade eram carros de boi. Ou nas imagens da ocupação do “palácio”, que aparentemente parece que as pessoas estão a roubar, mas não estavam. São estas questões que são analisadas e penso que bem explicadas. O cinema é e sempre foi uma interpretação da realidade. Podermos falar de cinema-verdade. Mas o que é a verdade? Não há duvida que Harlen tentou intervir nos acontecimentos, tal como Costa o faz.
Costa conseguiu brilhantemente trabalhar o material ao seu dispor, criando um dos mais extraordinários documentários que ja vi. É espantoso como os dois filmes se cruzam e se unem num só, de forma simples e expontânea.
Mais do que um filme sobre o reviver de “Torre Bela”, “Linha Vermelha” é um estudo sobre o poder da imagem, sobre a força do cinema e como essa molda uma sociedade. Este é apenas um pequeno exemplo daquilo que foi uma grande revolução. Acredito vivamente que este filme irá tornar-se rapidamente num instrumento de estudo para professores e alunos de cinema e de história. Um dos melhores filmes do ano e um grandioso filme do cinema português.
Realização: José Filipe Costa
Argumento: José Filipe Costa
Elenco:
Portugal/2011 – Documentário
Sinopse: Linha Vermelha recua a 1975, altura em que o alemão Thomas Harlan realiza o documentário Torre Bela, sobre a ocupação de uma grande herdade no Ribatejo, propriedade dos duques de Lafões. Esse filme transformou-se num ícone do período revolucionário português: a discussão acalorada sobre a quem pertence uma enxada da cooperativa, a ocupação do palácio, o encontro dos ocupantes com os militares em Lisboa e o processo de formação de uma nova comunidade… 37 anos depois, José Filipe Costa revisita esse filme emblemático, reencontrando os seus protagonistas e a sua equipa. Qual foi a influência da presença da câmara sobre os acontecimentos? Quem são hoje os protagonistas da altura? O que pensam sobre a ocupação e sobre o filme Torre Bela? Que memória têm da herdade? Linha Vermelha responde a estas questões e mostra como Torre Bela continua a marcar a história de um período conturbado do país.