“Mal Viver | Viver Mal” é o díptico de que todos têm falado desde que arrebatou o Urso de Prata em Berlim. Teve estreia nacional este Sábado no IndieLisboa com lotação totalmente esgotada e, a julgar pelas caras que já não voltaram para a segunda parte, o efeito excruciante da primeira metade do filme repetiu-se parcialmente como havia acontecido durante os visionamentos de imprensa na Alemanha.
Uma confissão, porque o filme também se presta a confissões: a autora destas linhas ponderou seriamente seguir esse mesmo caminho, mas o instinto sussurrou-lhe palavras de alento e ainda bem que assim foi.
Para todos os efeitos, a primeira parte deste tratado das mulheres e do fado da portugalidade, “Mal Viver”, é a via crucis do trabalho de João Canijo e não é um fardo fácil de carregar.
É também onde mais se nota a mão segura de Leonor Teles na direção de fotografia que, embora traga boas mudanças, introduz uma contradição entre a linguagem alegremente kitsch do trabalho do realizador e agora uma fotografia de ponta, trabalhada no que de melhor tecnicamente se faz na atualidade.
Essa contradição, numa nota pessoal da autora deste texto, representa uma partida daquele estilo quase de improviso ingénuo que povoa os anteriores trabalhos de João Canijo e que deixa saudades.
“Mal Viver” conta a história da perspetiva da família dona do Hotel onde decorre a ação, um local em Ofir que funciona um pouco como cápsula do tempo, tendo sido mantido na sua originalidade até agora.
A família não contém homens visíveis, tal como, aliás, o realizador já nos vem habituando. As atrizes são novamente as da sua confiança e, diga-se, é uma abençoada confiança no lote de gente que representa o que de melhor o nosso país tem nesta área.
O elenco é um luxo de Rita Blanco, Cleia Almeida, Anabela Moreira, Beatriz Batarda e Leonor Silveira, embora os restantes, mesmo os nomes mais novos, sejam perfeitos. Acontece que os primeiros nomes da lista são monstruosidades de talento, com destaque para a atuação de Leonor Silveira, absolutamente arrepiante.
Novamente, João Canijo traz para a mesa as ligações complexas de irmandade feminina, cheias de amor e ódio, de ressentimento, de um amor tão inevitável quanto condenador. Uma espécie de grilhão acompanha todas as mulheres da história, especialmente em “Mal Viver”, mas esse grilhão expandir-se-á para a segunda metade do filme, “Viver Mal”.
Aliás, ambas as partes funcionam não tanto como espelho uma da outra, mas como faces da mesma moeda, já que o público poderá assistir à repetição de algumas das cenas na segunda metade, embora vistas de perspetivas diferentes.
Em cada uma das histórias há uma inevitabilidade persistente em encontrar a mãe opressora e, mais do que escapar dela, cada uma das filhas perpetua a sua caminhada no deserto dessa ligação inescapável, dolorosa, de que não se corta nunca o cordão umbilical a não ser pela morte.
Até mesmo os escassos personagens masculinos, Jaime e Alex, interpretados respetivamente por Nuno Lopes e Rafael Morais, não conseguem evitar gravitar em torno ou da sua própria mãe intrusiva (no primeiro caso) ou da mãe intrusiva, exigente e dramática da esposa (no segundo).
O humor fantástico de Canijo, que é também autor do guião, aligeira um pouco o ambiente, embora, por vezes, quando o espetador der por si a rir muito do que está a ver, poderá sentir-se culpado ou até mesmo sentir que se ri por fora e chora por dentro, um pouco à semelhança daqueles personagens.
O sentimento de fantasmagoria que o hotel empresta a “Mal Viver” desaparece um pouco em “Viver Mal”, mas no contexto das histórias daquele segundo conjunto de personagens, as ações dos primeiros parecerão, mais que nunca, aquelas repetições recorrentes dos fantasmas, porque as almas penadas não conseguem deixar para trás o passado.
Aliás, Piedade (Anabela Moreira), a filha da matriarca Sara (Rita Blanco) e dona do Hotel, passa o tempo todo à procura da Alminha, a cadela que é já a terceira numa sequência de animais iguais ou muito parecidos, como que um símbolo desta procura incessante não só da própria alma perdida, mas ao mesmo tempo daquele arrastar eterno próprio das almas penadas confinadas ao mesmo espaço de onde não conseguem sair.
O Hotel, esse vortice que tudo suga, representa ainda o passado glorioso daquela família de que só restam acusações e amargura e em que as mulheres projetam umas nas outras as suas próprias frustrações. Ao mesmo tempo, perpetuam-se os mesmos erros, num loop incessável e numa cadeia de ADN feminino que pode, talvez, remontar à primeira mulher de todas.
“Mal Viver | Viver Mal” poderá gerar sentimentos conflitantes e, certamente, exigirá do seu público um esforço a que nem sempre está habituado. No mundo das redes sociais e da informação que circula à velocidade da luz, João Canijo pede que o espetador se sente com atenção durante pouco mais de 4 horas e isso é pedir muito.
O exercício de paciência é absolutamente compensador, mas ao mesmo tempo arriscado e, por isso, este díptico está para lá do mero objeto de cinema e transforma-se numa experiência física e sociológica. É um teste ao quanto quem vê cinema está disposto a dar de si, em troca, ao realizador que se predispõe ao risco desta maneira.
Ainda que o realizador surja aqui de carreira feita, esta é uma declaração de amor ao cinema, aos atores, ao tempo que se dedica a construir um filme, às relações de confiança que se estabelecem, ao quanto o realizador coloca nas mãos de uma equipa enorme.
João Canijo tem ainda essa humildade de saber que o seu lugar está nas mãos de todos, tendo-o expressado no final do filme, e essa é ainda outra prova de que para que “Mal Viver | Viver Mal” seja dado à fruição tem na sua base a tradição, mas também o desejo de se abrir à novidade e fazer o que ainda não tinha sido feito.
