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“Noite Sem Fim” A complexidade moral sob a lente do suspense

O filme de estreia da belga-canadiana Delphine Girard estreia nas salas portuguesas e propõe uma análise controversa que questiona as fronteiras do consentimento.
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Com quase dois anos de atraso, chega a Portugal um dos grandes filmes do Festival de Veneza de 2023. O tenso e inquietante longa de estreia da belga-canadiana Delphine Girard, “Noite Sem Fim”, que após o sucesso de “A Sister” — o seu curta metragem nomeado ao Oscar em 2020 — chega com uma proposta que à primeira vista pode parecer controversa: e se a natureza de uma agressão sexual comportar nuances mais complexas do que a dicotomia entre vítima e agressor? Essa questão é imediatamente posta em prática nos momentos iniciais do filme, mergulhando o espectador numa atmosfera de terror absoluto, onde nem tudo parece ser o que é.

Os primeiros 20 minutos do filme, confinados a um ambiente claustrofóbico, estabelecem o clima de incerteza e tensão. Encontramos uma mulher e um homem dentro de um carro em movimento, e um inquietante desconforto que paira no ar. Ela, Aly (Selma Alaoui) simula uma chamada telefónica para sua irmã, enquanto, em segredo, contacta a polícia, movida pela convicção de que sua integridade física está em risco iminente. Do outro lado da linha, está Anna (Veerle Baetens) a agente policial que recebe a chamada e que precisa decifrar a situação para intervir rapidamente. A conversa entre as duas é habilmente codificada para evitar suspeitas por parte do homem ao seu lado, até o momento em que ele se apercebe da farsa, desencadeando uma reação imprevisível.

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É precisamente a partir dessa premissa inicial carregada de suspense que a estrutura narrativa de “Noite sem Fim” se apresenta como um exercício de desconstrução. Girard não está interessada em manipular a audiência para atingir um certo efeito, mas demonstra um interesse especial em explorar a intrincada teia de subjetividades desse ato de violência sexual, sugerindo que a realidade pode ser consideravelmente mais multifacetada do que as aparências iniciais podem sugerir. É um território arenoso, porque instaura uma certa inquietação ao questionar a noção amplamente aceita de que toda agressão sexual seria intrinsecamente idêntica em sua essência, interditando assim qualquer forma de escrutínio.

E é através desta escolha de uma narrativa fragmentada, e interligada, que o filme se desdobra, revelando gradualmente os eventos que antecederam aquele instante dentro do carro. Girard nos convida a revisitar e reinterpretar cada detalhe, questionando o que é real e o que se esconde por trás das aparências;  fomentando assim uma dúvida persistente sobre a fronteira entre a realidade objetiva e as múltiplas camadas de subjetividade que podem obscurecê-la.

Dary (Guillaume Duhesme), o homem que está ao volante do carro, completa a terceira parte do puzzle. Quando confrontado pela polícia, ele nega qualquer abuso e insiste que foi tudo consensual. Ele figura como o enigmático acusado cuja insistência na versão consensual dos fatos contrasta fortemente com a percepção fragmentada de Aly, transformando a narrativa num campo de batalha onde a verdade se revela em nuances, nunca em absolutos.

Esse é outro ponto positivo no filme de Girard. A realizadora constroi suas personagens a fim de transcender a dualidade tradicional de vítima x algoz. Ao desenvolver o seu relato como um labiríntico jogo de espelhos, onde cada personagem carrega consigo uma carga emocional e moral que desafia as convenções habituais, e as expectativas do espectador, Girard se aventura com notável desenvoltura por um terreno narrativo que tinha tudo para dar errado.

Um belo filme de estreia, onde a realizadora empacota todos estes dilemas morais dentro de um suspense claustrofóbico de tirar o fôlego, atualizando um género que já nos deu bons filmes, como o dinamarquês “O Culpado” (2018) de Gustav Möller (e que deu origem a um remake protagonizado por Jake Gyllenhaal), mas estabelecendo uma ruptura com os discursos convencionais, abrindo assim espaço para uma discussão complexa e, por vezes, desconcertante sobre as dinâmicas de poder entre vítima e abusador e os limites entre a vitimização e agência.

Em última instância, “Noite Sem Fim” quer nos confrontar com a premissa de que embora um trauma seja inegavelmente real e devastador, sua manifestação pode ser tão diversa quanto qualquer outra experiência traumática, exigindo de nós uma postura de sensibilidade que vá além das verdades pré-fabricadas, expondo-nos à perturbadora possibilidade de que a verdade possa habitar uma zona moral mais cinzenta do que conseguimos admitir.

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“Noite Sem Fim” A complexidade moral sob a lente do suspense
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