“Nós” conta a história de uma família que se muda para o local onde a protagonista cresceu e que arca com as consequências de um trauma seu de 1986: numa praia com diversões e numa noite à priori tranquila, num contexto descontraído o terror encontrou as asas da sublimidade. Jordan Peele, realizador e argumentista desta película cheia de géneros, reinventa um estilo melodramático de non-sense, onde, pelo contrário, isto está tudo ligado. Começa a sua obra ao estilo do seu anterior sucesso, “Foge” (2017), com uma carga emocional pautada por uma banda sonora bem conseguida, num thriller que volta a tocar num assunto sensível: a América, o estereótipo que disseca ao pormenor com tanta subtileza. Num amor por plot twists, os próprios personagens ascendem como seus antagonistas, numa sátira política épica, Peele diz Nós quer dizer todos nós – o acrónimo de United States, um grito de guerra antagonista e poético, que desafia os limites de um estilo emblemático cada vez mais sui generis.
Voltando ao enredo, nessa mesma noite, a filha do casal, Adelaide, decide afastar-se e experimentar uma das diversões, numa espécie de túnel escuro, com ar assustador e degradante, que diz “encontra-te aqui”. No meio de um cenário sombrio e de evidente obscuridade, depara-se com um vasto número de espelhos que indicam a saída. Lá acontece o trauma que a vai acompanhar para o resto da vida: depara-se com a sua doppelganger, o seu duplo, a sua sombra, que lhe vai atormentar o futuro. Passadas umas boas décadas, a fim de fugir das suas vidas ocupadas, a família Wilson tira férias para Santa Cruz, Califórnia, com o plano de passar tempo com seus amigos, a família Tyler. Naquela noite, quatro pessoas misteriosas invadem a casa de infância de Adelaide, onde estão hospedadas. A família fica chocada ao descobrir que os intrusos parecem e falam como eles, apenas com aparências grotescas.
Jordan Peele consegue surpreender mantendo-se fiel a uma narrativa cheia de vida, de brilho, de magia com carácter atroz mas carregado de mensagem. Uma interpretação verdadeiramente sublime de Adelaide, interpretada por Lupita Nyong’o (atriz conhecida pelo seu papel em “Black Panther” e “12 Anos Escravo”), num registo versátil que faz jus ao título da obra, na capacidade de encontrarmos o nosso íntimo mais entranhado na imensidão do ser, na sua complexidade por vezes aterradora e contraditória. Um final que enche as medidas dos exigentes, que dá o essencial ao espectador, do início ao fim, que o obriga a explorar dimensões inefáveis. Um filme que nos faz ir ao lado mais obscuro de nós mesmos. Desmistifica o seio de uma família média americana, confrontada com os alter egos, explorando, com detalhe, surpresa e profundidade, uma narrativa rica em metáforas e distopias.
Adelaide, a meio da intriga, num desabafo e apelo familiar, salienta: “they look exactly like us. They think like us. They know where we are. We need to move and keep moving. They won’t stop until they kill us… or we kill them”. A luta contra um passado que nunca existiu, mas que está aqui para te assombrar e lembrar que o destino privilegia e conserva os mais audazes, aqueles que lutam incessantemente contra tudo e contra todos, apagando os fantasmas tacitamente sombrios. Um filme que encontra numa narrativa anticlimática – que, objetivamente, de terror pouco tem – o suspense que apazigua e abrilhanta as pontas soltas do guião, com uma cinematografia cativante, um argumento sarcástico e intrigante, mostrando que, de facto, e quando pensada com arte, a obscuridade, o terror, o lado sombrio das coisas, de nós e do mundo, pode ser impactante e, sobretudo, reconfortante. Provocante e misterioso, “Nós” transcende o típico cinema oco de jump scares óbvios e personagens cliché, e vai mais além. Encontra na ambiguidade o conforto e magia de um melodrama cómico e fascinante.
Realização: Jordan Peele
Argumento: Jordan Peele
Elenco: Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss
EUA/2019 – Horror/Thriller
Sinopse: Um pai e uma mãe levam os filhos para a sua casa de praia, esperando passar uns momentos descontraídos com a família e os amigos. Só que a tranquilidade e a alegria transformam-se em tensão e caos quando chegam algumas visitas que não foram convidadas… Um pesadelo saído da cabeça do galardoado cineasta Jordan Peele.