Tal como as personagens de Wim Wenders em “O Estado das Coisas”, vivemos tempos suspensos no tempo. Há quem diga que isto parece um filme. Sim, a realidade tornou-se finalmente espelho da ficção. Estamos submersos e em fluxo descontínuo. Nesta espera, há tempo para pensar, para refletir e desejar que o tempo volte com a promessa de dias melhores.
Não há, no entanto, memória de um cenário assim, com toda a indústria cinematográfica paralisada, com salas de cinema encerradas, sem estreias. Muitas salas não vão conseguir reabrir no final desta pandemia. Se a forma como vemos cinema estava já em transformação, 2020 vai deixar uma forte marca nessa mudança. O público vai menos ao cinema e procura conteúdos noutros ecrãs (mais pequenos).
Claro que continuarão a existir salas de cinema e os filmes vão continuar a estrear em sala, mas o streaming é o futuro e, depois da pandemia, haverá muitos mais filmes que vão optar por essas plataformas digitais. Cada vez mais, as salas de cinema precisam de se reinventar se se quiserem manter abertas. Precisam de criar grandes eventos à volta das estreias e garantir uma experiência única aos espectadores. Grandes estreias, ciclos de cinema, conversas com realizadores e elenco e maratonas são exemplos do que já algumas salas de cinema têm vindo a fazer para se manterem vivas e dinâmicas.
O regresso à normalidade vai ser lento, vai levar tempo e, até lá, será preciso continuar a procurar alternativas para exibir filmes.
Convidámos João Nuno Pinto, realizador de “Mosquito” (2020) e “América” (2010) para falar um pouco sobre a crise epidemiológica por que passamos.
C7A: Que análise faz do efeito que esta pandemia está a ter na indústria cinematográfica nacional?
João Nuno Pinto: A nossa atividade está completamente paralisada. O cinema envolve uma cadeia de profissionais gigante, direta ou indiretamente ligados à produção de um filme. Desde a criação e desenvolvimento, trabalho de campo, pesquisa e escrita, que pode demorar meses ou anos, passando pela produção, durante a preparação e rodagem, e por todos os atores, figurinistas, maquilhadores, departamento de arte, equipa de câmara, efeitos especiais e maquinistas. Enfim, todos os freelancers e técnicos envolvidos na preparação e filmagens, aos restaurantes e equipas que alimentam esta gente toda, às casas de aluguer de material e pós-produção e aos distribuidores e exibidores. Por isso é que é tão caro fazer filmes. E tão mal pago do ponto de vista de quem os faz. Apesar de aparentemente envolver muito dinheiro, não chega para a quantidade de gente que envolve fazer um filme. Mas agora nem pouco, nem poucochinho, é zero. Tudo está parado. E não sei quando é que vai ser possível voltar a colocar a máquina a funcionar. A nossa profissão vive do contacto físico e social, é um trabalho de equipa, de muitas equipas e indivíduos durante um longo processo. E, para a maioria desta gente toda, estar parado significa não ter dinheiro para pagar a renda ou pôr comida na mesa. Mas se, por um lado, a situação atual é um completo desastre, por outro pode ser que haja aqui uma janela de oportunidade para a valorização da nossa arte. Obrigadas pelo confinamento, as pessoas estão a consumir mais cinema. Estão a descobrir filmes que de outra maneira nunca iriam ver. Acredito que, quando isto passar, o ato de ir a uma sala de cinema vai voltar a ser celebrado. O cinema sai valorizado disto tudo. Vão produzir-se mais filmes e com mais urgência. A história ensina-nos que depois de uma grande catástrofe mundial há sempre um grande avanço social. E se há uma coisa que ficou evidente é que depois do leite, do pão e do vinho, a cultura é fundamental para a nossa sobrevivência.
C7A: “Mosquito” foi obrigado a sair das salas de cinema para passar para o serviço de streaming da Filmin. Como é que viveu essa transição? Que impacto teve no filme?
JNP: O filme estreou exatamente no mesmo dia da estreia do vírus em Portugal. Esse fim de semana foi o pior fim de semana de bilheteira do ano. Teve mais uma semana de agonia e, na semana seguinte, os cinemas fecharam. Obviamente que o que aconteceu foi um enorme tsunami emocional. É muito triste. Não acredito que o filme vá ter nova chance junto dos distribuidores. Quando reabrirem as salas de cinema, os exibidores vão querer colocar blockbusters que lhes deem garantia de salas cheias para começarem a recuperar do buraco onde estão metidos e há ainda a fila de filmes em espera que viram as suas estreias canceladas ou adiadas. Com todo o buzz que tinha sido criado, com as notícias e as críticas que entretanto tinham saído, 20 000 espectadores era um número perfeitamente razoável para este filme. A pandemia retirou qualquer possibilidade de que se tornasse um filme de referência para um futuro apoio automático do ICA. Então de festivais nem se fala. Depois de abrir Roterdão, proeza inédita do cinema português, essa de abrir um festival de categoria A, o segundo festival em que entrou e estava em competição, o Lux Film Fest, terminou abruptamente. O filme acabou por ser o último filme exibido no festival. E não houve atribuição de prémios. Os outros festivais foram cancelados. É um ano perdido e é muito inglório para toda a gente envolvida no filme e para quem, como eu, esteve sete anos a trabalhar num projeto tão pessoal e ambicioso.
C7A: O estado não devia assegurar que o cinema chega a toda a gente? Assegurar que as obras são vistas? Isto para não ficarmos condicionados aos interesses dos privados? Ou seja, não devia haver uma empresa pública que garanta a distribuição e exibição do cinema português?
JNP: A construção da nossa identidade enquanto povo, enquanto nação, passa também pela produção e consumo de uma cinematografia a que possamos chamar nossa. E não faz sentido que o estado seja o maior investidor do cinema nacional e não crie mecanismos que assegurem que o resultado desse dinheiro não seja visto pelo maior número de pessoas possível. Não sei é se a melhor solução é haver uma rede estatal de exibição, porque isso é onerar ainda mais o estado e não somos um país assim tão rico. Bastava que houvesse a obrigatoriedade de haver uma percentagem de filmes nacionais em exibição em cada sala. É uma medida tão simples quanto isso. E fazer o mesmo com o streaming. No Brasil, por exemplo, o grande salto que foi feito na indústria do cinema foi quando se passou a obrigar os canais de cabo e streaming, estilo Netflix ou HBO, a comprar ou produzir uma percentagem de produções nacionais na sua grelha ou catálogo de oferta. A solução é política, não tem custos para os bolsos dos contribuintes e faz crescer toda uma indústria, formando técnicos e profissionais e contribuindo para a criação de inúmeros postos de trabalho. É o estado a intervir enquanto regulador, que defende a sua cultura e gera riqueza. E não entendo porque é que isso, até hoje, ainda não foi feito.
A boa notícia é que a Netflix, juntamente com o ICA, lançou recentemente um concurso que visa fomentar a produção audiovisual portuguesa. Leia a notícia aqui.
Nota: O filme “Mosquito” encontra-se disponível na plataforma de streaming Filmin, aqui.