“O Movimento das Coisas”, de Manuela Serra: O Portugal que não divisa o futuro

O Movimento das Coisas, 1985 O Movimento das Coisas, 1985

Por esta altura, a história deste documentário português de 1985 já é sobejamente conhecida, mas nunca é demais relembrar. Durante décadas colocado de parte, objeto de muita dissidência e desentendimentos intestinos, finalmente é distribuído comercialmente no cinema em 2021, mais de 35 anos depois de concluído.

Pelo caminho, ficou a carreira de Manuela Serra no cinema e uma amargura que só agora, com a grande receção que o filme teve junto de novos públicos e renovados olhares, pôde parcialmente dissolver-se no poente dos tempos.

Agora, em 2022, “O Movimento das Coisas” pode ser visto online de forma gratuita, através do excelente serviço público do Novo Cine, até 16 de dezembro próximo, uma grande oportunidade para recuperar o trabalho iluminado de Manuela Serra, o seu único até hoje.

“O Movimento das Coisas” padeceu, à altura da sua estreia, de um grave problema que sempre se abateu pelo Portugal dos pequeninos: era demasiado inovador, em aparência demasiado vago e abstrato e era realizado por uma mulher que, mal ou bem, o acabou já sozinha, fora da Cooperativa Virver.

E este documentário é tanto um extraordinário trabalho etnográfico como um ensaio para um Portugal de futuro incerto, envolto na mesma névoa em que se havia encerrado durante 40 anos. Essa névoa e esse silêncio aterrador ainda se respiram naquela aldeia de Lanheses onde Manuela Serra filmou entre 1978 e 1985.

Claro, a névoa e o silêncio estão subentendidos e nem são o foco principal da realizadora, que se compraz na naturalidade franca das gentes que vivem da terra e dos seus proventos, que dependem do seu trabalho, que aprenderam a viver com o que têm, e tentam perceber, afinal, o que significa isto da liberdade.

É tanto um objeto de esperança quanto de amargura perante o congelamento e um certo torpor que apenas a natureza e a necessidade de sobrevivência souberam dar sentido. A chegada destas gentes da cidade atrai-lhes a curiosidade, podem ver-se as espreitadelas atrevidas para a câmara, o desejo de saber que novidade é esta e, talvez, que é que eles têm para mostrar, afinal.

“O Movimento das Coisas” é um pêndulo eterno que mergulha nos hábitos das pessoas que compreendem em absoluto a natureza de que dependem, fazem a sua vida em torno dos seus horários e caprichos, vivem segundo o seu calendário. Na altura de colher os seus frutos, festejam com música, cantares e dançares populares, brindam com vinho carrascão que sorvem das malgas.

Os olhares são de suave dureza, uma contradição com que convivem sem problemas de consciência, os homens e as mulheres fazem o que têm a fazer e fazem-no porque assim tem sido durante décadas, durante séculos. São as tradições, mas é também o não saber fazer-se de outra maneira.

O Movimento das Coisas, Manuela Serra

Ao mesmo tempo, alheios à passagem do tempo, trabalham a terra com ferramentas que remetem para a Idade Média, rudimentares, em madeira, suficientes para os seus objetivos de sobrevivência, mas um sintoma tanto de intemporalidade como de passado.

A missa ainda é o culminar de uma semana de trabalho que vive de rotinas e de uma pobreza tímida que passa bem sem saber que existem outros movimentos, outros tempos que passam, esses aqui ainda não chegaram ou chegam lentamente.

Vestem-se os melhores fatos, vai-se conversar um pouco, presta-se vassalagem a um senhor de outra estirpe, tão silencioso como a natureza, tão enigmático como os silêncios das gentes. Que quer dizer aquele olhar sem fala? É julgamento, é compaixão, é um abraço, é condenação? A resposta fica refém da imaginação dos fiéis.

O progresso assoma esporadicamente, na forma de uma fábrica ou da jovem mulher que lá trabalha e não sabe muito bem o que o futuro lhe reserva. Os elementos de progresso são os invasores, ruidosos, ameaçadores, tentam quebrar o jejum dos dias passados a pão e vinho, uma sopita jeitosa de vez em quando, uns peixinhos fritos quando calha.

As conversas trocadas são isentas de qualquer conteúdo aprofundado, não são reflexões sobre nada e se o são, os signos encontram-se apenas com os seus intervenientes e não estão ao alcance de quem não vive o mesmo quotidiano.

É um hábito, uma tradição ou uma fatalidade, este silêncio? Um pouco de cada um destes, a julgar por uma espécie de ensejo tímido que o cinema provoca na aldeia, especialmente entre os mais novos. Deseja-se mais, mas sem certezas de que se tenha permissão para tal, numa prisão ou um limbo que a autoridade e as obrigações criaram para evitar a audácia.

São gentes que acordam lentamente do sono profundo, habituadas a viver assim, divididas entre o sagrado e o profano, o passado e o futuro, temerosas, mas ao mesmo tempo curiosas. É espantoso o sentimento que Manuela Serra captou e soube, depois, na edição, dar sentido de forma tão íntima com a sua linha narrativa.

Escapam-se do esquecimento pela força da vitalidade, estes homens e mulheres que ainda atravessam o rio em barcas rudimentares porque as pontes ainda não foram construídas. Deslizam pelo nevoeiro, por este rio acima, por este rio abaixo, alheios, mas atentos porque o seu silêncio não significa indiferença.

“O Movimento das Coisas” é um objeto de cinema fascinante, clarividente, à frente do seu tempo. É também enigmático, a que uma banda sonora futurística de José Mário Branco empresta um sentido ainda mais premente de que todo este conjunto de talento e visão pudesse ter sido amplamente divulgado no Portugal de meados dos anos 80, tão dividido quanto esperançoso.

Ainda assim, feliz é o mundo em que, mesmo em 2022, “O Movimento das Coisas” pode ser visto com os olhos do futuro a que apontou na altura. É um importante ponto de reflexão sobre o estado do cinema atual e sobre o cada vez mais necessário papel das mulheres num cinema que ultrapassa as telas, que é um projeto de comunidade, que envolve no presente, mas deixa futuro, deixa exemplo.

“O Movimento das Coisas” pode ser visto aqui, até dia 16 de dezembro.

O Movimento das Coisas, 1985
“O Movimento das Coisas”, de Manuela Serra: O Portugal que não divisa o futuro
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