No seu filme “O Primeiro Encontro” (“Arrival”), Denis Villeneuve arquiteta uma obra-questão acerca da natureza do tempo, da comunicação, da linguagem e da morfologia, e em que o espanto e a estranheza, dois modos iguais de avassalamento e sublime, comutáveis e auto-somatórios, concretizam um tema primeiro: o que é o outro, o que é aquele diferente de nós?
Enquanto centrada nas posturas e mundivisões de Louise Brooks (Amy Adams) e Ian Donnelly (Jeremy Renner), ela uma linguista (ciência humana) e ele um matemático (ciência exata), desenha-se uma matriz de convenção e descodificação da figura outra: para Louise, o outro é aquilo que ele diz como podendo ser tudo aquilo que ele pode dizer enquanto podendo ser entendido de múltiplas perspetivas relativistas (o sentido polissémico), enquanto que para Ian, o outro é o provedor de grelhas de saber inequívoco, as quais só podem ser entendidas pela linguagem determinista do discurso-ciência, na sua exatidão matemática.
No balanço entre estas duas formas de experienciar, cria-se o equilíbrio entre o ver e olhar a outra morfologia, entre o sentir o medo e o enlevo da corporalidade diversa, e a vontade de comunicar com a consciência que está para lá da aparência e do corpo físico. A apresentação, a troca e o desenhar de vocabulário afirmam a ultrapassagem da estranheza pela necessidade de descodificar, compreender, canalizar e comunicar.
A procura de um modo de entendimento linguístico mútuo é, para Louise, a única forma real e útil de conseguir a comunicação. Todos os seus esforços são os de procurar a chave e os princípios fundamentais e capitais de uma língua que é forma-desenho, orgânica e fluida, que se espoleta e desvanece num modo- grafia que tem tanto de tinta como de gás.
Se Villeneuve faz um filme sobre as formas da linguagem, e como ela o pode ser, uma escrita sem direção no plano material da enunciação, mas antes uma grafo-escritura em circularidade que tem um tempo-duração que não necessita de ficar registado, porque ela é uma forma de tempo relativo, fica então clara uma postura acerca do ato comunicativo: a linguagem é evanescente enquanto fornecedora de um sentido de precisão do singular (os dois extraterrestres pretendem ensinar as suas formulações e códigos linguísticos fundados na polissemia, para depois lhes ser possível pedir de uma forma o mais claramente entendível), no uso do comunicar que vale pelo momento em que existe e que depois desaparece – mas que fica sob a forma de memória – em contraposição com a necessidade de registo/cristalização dos símbolos (a gravação vídeo e a impressão de imagens para aprendizagem dos humanos e posterior compreensão, para poder perceber), numa forma de comunicação que se arquiteta pela necessidade de saber as razões e os objetivos da vinda à Terra dos seres outros. Assim, entre a singularidade do grafismo-tempo que só dura o suficiente para comunicar e o registo para estudo e análise de todos os momentos comunicados, marca-se a diferença entre um estado avançado, em que a linguagem é uma forma de abrir o tempo, e um estado menos lúcido, em comparação, em que essas duas dimensões (ainda) não são correlacionadas.
Ao fazerem de Louise um veículo de codificação e descodificação da sua linguagem-tempo, os heptapóides enformam nela uma possibilidade senciente de experienciar o tempo de uma forma completamente diversa e, como tal, estranha, e apesar disso, avassaladora e sublime para o humano: a sua não- linearidade (tal como a linguagem dos extraterrestres) permite o decorrer múltiplo de uma temporalidade da presciência/omnisciência e da omnipresença num contínuo de tempos que são passados, presente e futuros de si mesmos.
As memórias do futuro de Louise são o tempo não-cronológico e o tempo total, está à frente como está atrás. E isso é o cinema. Só com o cinema uma tal formulação pode ser áudio-visualmente expressa e comunicada. A estruturação do filme enquanto a organização das visões-memória de Louise é o ato meta- fílmico de construção de uma revelação, desvendada pouco a pouco, em que a equivalência entre a personagem a entender e o filme a ser entendido é total.
É a construção não-linear que arquiteta a percepção do sujeito- personagem e a tessitura do objeto-filme: é um filme de montagem não-linear sobre a natureza não-linear de como alguém (Louise) entende a não-linearidade do que ela percebe como sendo imagens/visões de ocorrências que, no filme, são memórias e que como tal são percebidas como sendo compreendidas como tal pela personagem – e que, na verdade, não são – levando assim ao entrelaçar de dois níveis de tempo não-linear, o do seu tempo intra-narrativo e do seu tempo construtivo.
O filme é montado de modo a acentuar a natureza não-linear e relativa do seu tempo-montagem, no modo como equaliza o tecer da busca de compreensão e revelação da personagem e a sua forma fílmica, feita ela também de não- linearidade, num cinema de torção do tempo, só possível de ocorrer pelo controlo da maleabilidade intrínseca do meio cinematográfico: um em que o tempo pode ser efetivamente criado e recriado, jogado para a frente e para trás, torcido e retorcido, feito anacrónico no seu tempo diacrónico de extensão temporal finita de obra fílmica.
Assim sendo, não só Villeneuve faz um filme sobre as formas do tempo como também faz um filme que se comenta a si mesmo, enquanto fazedor do seu tempo e da percepção da sua temporalidade narrativa e formal: só através da montagem se podem criar as memórias do futuro. Só quando, no filme, elas são percebidas – porque colocadas na parte final do seu corte narrativo – não como visões-memória, mas sim como visões-futuro, apesar de terem sido sempre – cinematicamente, dramaticamente e narrativamente – entendidas como um recuo memorial e imagético ao passado. Aí, afirma-se toda a força do ato narrativo enquanto vertido na forma construtiva central do cinema: a montagem.
O encanto da descoberta, pelas personagens, do sentido linguístico das mensagens dos heptapóides equivale ao mesmo encanto meta-fílmico de apercebimento da lógica de construção da obra e em que a montagem – aqui sob a sua forma não-linear – se afirma primacial nessa resolução linguístico- audiovisual: linguagem de um cinema = linguagem de um tempo, a deste filme e o de um outro que faça uso criterioso desse modo maior de construção/torção da dimensão que os humanos ainda não podem abarcar como os extraterrestre heptapóides de O Primeiro Encontro podem: um tempo total, porque pode ser montado da forma como se o quiser montar.
No cinema, tal é possível, já que, no cinema, o tempo é o que quisermos dele fazer.