Parágrafo 175, liberdade zero

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Estamos em 2022 e continuamos a ter, nos poucos jornais portugueses que restam, conteúdos exclusivos apenas para assinantes que nos deviam envergonhar. Esta semana que passou o historiador (cujo nome não vou dizer para não publicitar polémicas, ou acabei de criar?) teve que opinar duas vezes sobre o mesmo assunto, o tema que ele não domina ironizando a nomenclatura LGBTQIA+ (a propósito de uma campanha comercial de um canal de televisão). Ora eu também não domino e esta opinião que dou não tem qualquer custo para quem lê e se não quiserem continuar podem parar já e fazer algo certamente melhor. Prezo a sua figura como historiador, a sua dedicação ao arquivo Ephemera e o seu poder de encaixe. Apesar de ter moldado o seu pensamento ao longo dos anos, o qual não me identifico de todo, o seu contributo político foi sempre determinante para qualquer discussão.

E é aqui que quero fazer a ponte, para lembrar ao historiador, porque é que a história não se apaga (ironia à parte) e se repete. É que é exactamente por isto, porque há população que continua nos dias de hoje a ser oprimida pela sociedade em que vivemos e que tem direito à sua identidade. Por isso cada vez mais temos que falar e estar informados e acima de tudo sermos tolerantes uns com os outros porque, quer queiramos ou não, ainda temos que viver em sociedade, por isso, obrigada por trazer mais assunto para cima da mesa.

Para nos lembrarmos das histórias as mesmas têm que nos ter sido bem contadas, e por isso, para conteúdos exclusivos temos Great Freedom de 2021 já disponível na MUBI, e este vos garanto que vale a pena. O filme é do realizador austríaco Sebastian Meise, que conta com esta segunda longa metragem após o êxito de Stillleben- Still life de 2011. Foram precisos dez anos para o regresso ao grande ecrã mas ainda bem que assim foi. Apesar de não ter tido uma grande distribuição comercial mesmo na Europa, quem o viu não ficou indiferente, ou não devia. O filme é passado na Alemanha pós-guerra onde o Parágrafo 175 do código penal alemão que vigorava à época (1871-1994, mas com revogações pelo meio) indicava que todos os actos homossexuais entre homens eram considerados crime. Ora este parágrafo 175 está também a tentar ser apagado da nossa história, mas não deve, para nos lembrarmos que a cultura de cancelamento não serve para nada, muito menos para não nos fazer pensar e questionar o contexto de uma época. Alguns destes homens foram enviados para os campos de concentração identificados com o triângulo cor de rosa, contudo, com a abolição dos mesmos a partir de 1945, estes homens passariam a cumprir pena na prisão.

Assim começa a história de Hans Hoffmann brilhantemente interpretado pelo feio mais bonito Franz Rogwski, actor conhecido pelos filmes de Christian Petzold (realizador que não consegue fazer um único filme medíocre) como Transit de 2018 e Undine de 2020. Hans, que ao ser identificado a cometer tal “crime” é preso, leva-nos ao longo de 116min de filme a entrar num mundo indiferente. Não há propriamente uma grande história, não sabemos nada do seu passado, da sua família ou como sobrevivia…tudo começa no presente e por aí já estamos a ser conduzidos. Praticamente toda a acção passa-se na prisão, onde conhece o seu companheiro de cela, Viktor, que será fundamental para entender a liberdade dentro do encarceramento, mas onde está também o seu namorado numa outra ala. Uma sucessão de acontecimentos vão ditar a proximidade de Hans a Viktor (este a cumprir pena por homicídio), começando por uma relação de companheirismo dentro da solidão que evolui primeiro por compaixão de Viktor por Hans (que esteve no campo de concentração como mostra a tatuagem que o identificava) para um relacionamento de satisfação pessoal de ambos na sua cela.

As suas vidas ali estão condenadas a não pensar no futuro, a viver apenas a liberdade dentro daquelas quatro paredes, mas até aqui nada parece uma história de amor até que Hans é liberto graças a uma revogação do Parágrafo 175. Os últimos minutos de filme conseguem ser ainda mais inteligentes que a outra narrativa que já estava para trás e, sem qualquer diálogo, encontramos a mais bela resposta ao propósito que criámos para nós. E aqui a liberdade é presa novamente para num ímpeto Hans decidir como quer viver a sua vida. Espero que cada um de nós também encontre a sua resposta, até mesmo aquele humorista (cujo nome também não posso dizer) que escreveu conteúdos exclusivos em jornais sobre LGBTQIA+ (início desta semana) e que quando não teve graça também não ficou para a história.

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