O tema da situação extraordinária caída sobre o indivíduo ordinário sofre aqui uma nuance importante: o evento é antes supra-ordinário (ficar para trás, deixado como morto pela sua própria comandante e restante tripulação, num planeta sem oxigénio e com meios de alimentação escassos) e o indivíduo é, ele sim, extraordinário (inventivo, autoconfiante, lúcido, resolvedor sistemático de problemas). Nada mais irresolúvel, à partida, parece ser a situação base: onde não há vida, nada dela se pode fazer nascer. Somente o intelecto de Mark Watney e as ferramentas científico-tecnológicas (não originadas no planeta) que tem ao seu dispor podem produzir os instrumentos de concretização da possibilidade impossível: não só o manter da vida, como o seu prosseguir, e mais ainda o divisar das formas e dos modos (as técnicas, num mundo sem técnica) de conseguir a locomoção interplanetária (ela também, logo à partida, impossível).
Sozinho, Watney só tem a fazer e a conseguir o encontro inaudito consigo mesmo e com o seu próprio destino (no que o necessita absolutamente de arquitetar), a sua força pessoal, o seu pensamento e a sua imaginação. O primeiro módulo resolutivo é puramente singular: nada sobre nada, falta de ar, inanidade biológica, aridez total. O planeta Marte. A sua decisão está de acordo com a sua extra-ordinariedade pessoal: não morrer, apesar de tudo. Não morrer ali, em Marte, mais do qualquer outra coisa.
Aos dias contados, só a reflexão intelectual, o saber científico e a engenharia podem ser a salvação e o milagre – que nunca por Watney é vocalizado como sendo divino ou fundado na crença religiosa, ainda que materialmente faça uso de um objeto de culto religioso, a Cruz de Cristo de metal que pertence ao seu colega tripulante, o Major Rick Martinez (Michael Peña) – que o mantém vivo e a viver. A partir do metal da cruz, ele criará a água que lhe dará a possibilidade de uma terra molhada, a partir da secura árida que o rodeia. Água e terra, coisas criadoras da vida, cortinas de plástico, esvaio líquido, gotículas expansivas que lhe farão uma (sua) Terra em Marte. Terá que fazer para si um mundo, formá-lo à luz da sua imagem-terra, terá ele que terra-formar.
Botânico que é, e com as batatas (importadas da Terra, se diga) e o solo marciano (potenciado e substratizado com os seus dejetos biológicos e com os dos seus colegas), Watney semeia o alimento que o poderá manter até que chegue a próxima missão astronáutica a Marte – à situação supra-ordinária tem que se responder com a esperança ultra-ordinária). Num supremo ato de criação, Watney torna-se, e por fazer uso da sua “terra”, no primeiro marciano, como vivente do que do seu solo, ainda que dentro de uma estufa, cresce. Watney torna-se assim o primeiro habitante e residente – ainda que contra a vontade, o que é óbvio – de um outro planeta. A superação das extremas dificuldades acentua ainda mais a individuação do seu ato: contra as possibilidades mais negativas, só mesmo a positividade do humano – resiliência, organização – pode ser o fator de diferença entre o viver e o perecer.
A construção de um outro lugar de habitação, um outro domínio de intervenção humana (marciana?) efetiva o tema da mundanização: o que é isso de fazer mundos? Vindo de uma grelha de linhas e demarcações, e ainda que ao serviço de uma agência nacional – NASA (EUA) – Watney é um abandonado, a sua situação jurídica é ela própria criadora de pressupostos futuros: se é o único num local onde a lei da propriedade (terrestre) não se efetiva, ele pode tomar para si, por presença e usufruto, a “terra” que não é de ninguém, até porque a “coloniza”, já que plantar nela lhe dá o direito a assumir a propriedade – se fizer uso de alguns dos preceitos jurídicos do planeta de onde vem – de um imenso planeta no qual, por mais que caminhe e ande – o que ele faz – ele será sempre o primeiro a percorrer. Uma “posse” sem posse, mas um ter por explanação territorial e temporal. E tão irónica é essa “posse” que nunca poderá ser plenamente conseguida sem que haja a necessária terra-formação dessa massa de vivência. Ter e não poder estar, ele é o pré-colono em processo de colonização do que ainda não pode ser colonizável. Um mundo seu, mas que não lhe pertence. Uma obrigatoriedade de pertença a um mundo a que não quer pertencer. Após os planetas LV da série Alien, os lugares inóspitos, usuais no cinema de ficção científica de Ridley Scott, têm neste Marte, alaranjado e enganadoramente habituável, mas sempre pronto a matar e a fazer implodir – caso não haja capacete e fato, figuras recorrentes dos seus filmes de outros mundos – um humano que fica nele por mais tempo e que, engenhoso e inventor, o consegue, de certo modo, “vencer”, mas não conquistar, tal como nenhum dos planetas extra-terrenos e nocivos de Scott – – como este Marte é – foi conquistável, somente passável.
O segundo módulo resolutivo só poderia ser coletivo: só após estabelecida a comunicação com o planeta de origem (e só foi descoberta a sobrevivência de Watney quando procuraram pelo seu corpo morto para que não aparecesse nas câmaras em futuras missões) é que a força coletiva do planeta – organizacional, intelectual e técnico-científica – também a ele se junta para o trazer de volta ao mundo no qual será sempre um humano diferente: um terráqueo extraterrestre, ele que agora é também um marciano. Apesar de todas as (ainda mais) extremadas dificuldades, entre as quais se enumeram a destruição das colheitas e a explosão da sonda que lhe iria levar mantimentos, Watney e todos os seus pares, conseguem o impossível: trazê-lo para casa. E com todos os ultra-obstáculos ultrapassados, ele – que ascende quem nem um “Homem de Ferro” até junto da sua Comandante Melissa Lewis (Jessica Chastain) – é o perfeito exemplo da resiliência humana…e marciana.