“Perdido em Marte” – O Feito Impossível

"Perdido em Marte" (2015), de Ridley Scott, com Matt Damon "Perdido em Marte" (2015), de Ridley Scott, com Matt Damon
Sobreviver como terráqueo ou viver como marciano? Por paradoxal que pareça, a odisseia do Dr. Mark Watney (Matt Damon) estabelece-se entre esses dois polos antagónicos: a aparente impossível tarefa de se manter vivo num planeta hostil à vida e a multi-desafiante situação de ter que se construir quotidianamente como um seu habitante, apesar da sua inclemência sempre pronta a o matar.

O tema da situação extraordinária caída sobre o indivíduo ordinário sofre aqui uma nuance importante: o evento é antes supra-ordinário (ficar para trás, deixado como morto pela sua própria comandante e restante tripulação, num planeta sem oxigénio e com meios de alimentação escassos) e o indivíduo é, ele sim, extraordinário (inventivo, autoconfiante, lúcido, resolvedor sistemático de problemas). Nada mais irresolúvel, à partida, parece ser a situação base: onde não há vida, nada dela se pode fazer nascer. Somente o intelecto de Mark Watney e as ferramentas científico-tecnológicas (não originadas no planeta) que tem ao seu dispor podem produzir os instrumentos de concretização da possibilidade impossível: não só o manter da vida, como o seu prosseguir, e mais ainda o divisar das formas e dos modos (as técnicas, num mundo sem técnica) de conseguir a locomoção interplanetária (ela também, logo à partida, impossível).

Sozinho, Watney só tem a fazer e a conseguir o encontro inaudito consigo mesmo e com o seu próprio destino (no que o necessita absolutamente de arquitetar), a sua força pessoal, o seu pensamento e a sua imaginação. O primeiro módulo resolutivo é puramente singular: nada sobre nada, falta de ar, inanidade biológica, aridez total. O planeta Marte. A sua decisão está de acordo com a sua extra-ordinariedade pessoal: não morrer, apesar de tudo. Não morrer ali, em Marte, mais do qualquer outra coisa.

Aos dias contados, só a reflexão intelectual, o saber científico e a engenharia podem ser a salvação e o milagre – que nunca por Watney é vocalizado como sendo divino ou fundado na crença religiosa, ainda que materialmente faça uso de um objeto de culto religioso, a Cruz de Cristo de metal que pertence ao seu colega tripulante, o Major Rick Martinez (Michael Peña) – que o mantém vivo e a viver. A partir do metal da cruz, ele criará a água que lhe dará a possibilidade de uma terra molhada, a partir da secura árida que o rodeia. Água e terra, coisas criadoras da vida, cortinas de plástico, esvaio líquido, gotículas expansivas que lhe farão uma (sua) Terra em Marte. Terá que fazer para si um mundo, formá-lo à luz da sua imagem-terra, terá ele que terra-formar.

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Botânico que é, e com as batatas (importadas da Terra, se diga) e o solo marciano (potenciado e substratizado com os seus dejetos biológicos e com os dos seus colegas), Watney semeia o alimento que o poderá manter até que chegue a próxima missão astronáutica a Marte – à situação supra-ordinária tem que se responder com a esperança ultra-ordinária). Num supremo ato de criação, Watney torna-se, e por fazer uso da sua “terra”, no primeiro marciano, como vivente do que do seu solo, ainda que dentro de uma estufa, cresce. Watney torna-se assim o primeiro habitante e residente – ainda que contra a vontade, o que é óbvio – de um outro planeta. A superação das extremas dificuldades acentua ainda mais a individuação do seu ato: contra as possibilidades mais negativas, só mesmo a positividade do humano – resiliência, organização – pode ser o fator de diferença entre o viver e o perecer.

A construção de um outro lugar de habitação, um outro domínio de intervenção humana (marciana?) efetiva o tema da mundanização: o que é isso de fazer mundos? Vindo de uma grelha de linhas e demarcações, e ainda que ao serviço de uma agência nacional – NASA (EUA) – Watney é um abandonado, a sua situação jurídica é ela própria criadora de pressupostos futuros: se é o único num local onde a lei da propriedade (terrestre) não se efetiva, ele pode tomar para si, por presença e usufruto, a “terra” que não é de ninguém, até porque a “coloniza”, já que plantar nela lhe dá o direito a assumir a propriedade – se fizer uso de alguns dos preceitos jurídicos do planeta de onde vem – de um imenso planeta no qual, por mais que caminhe e ande – o que ele faz – ele será sempre o primeiro a percorrer. Uma “posse” sem posse, mas um ter por explanação territorial e temporal. E tão irónica é essa “posse” que nunca poderá ser plenamente conseguida sem que haja a necessária terra-formação dessa massa de vivência. Ter e não poder estar, ele é o pré-colono em processo de colonização do que ainda não pode ser colonizável. Um mundo seu, mas que não lhe pertence. Uma obrigatoriedade de pertença a um mundo a que não quer pertencer. Após os planetas LV da série Alien, os lugares inóspitos, usuais no cinema de ficção científica de Ridley Scott, têm neste Marte, alaranjado e enganadoramente habituável, mas sempre pronto a matar e a fazer implodir – caso não haja capacete e fato, figuras recorrentes dos seus filmes de outros mundos – um humano que fica nele por mais tempo e que, engenhoso e inventor, o consegue, de certo modo, “vencer”, mas não conquistar, tal como nenhum dos planetas extra-terrenos e nocivos de Scott – – como este Marte é – foi conquistável, somente passável.

O segundo módulo resolutivo só poderia ser coletivo: só após estabelecida a comunicação com o planeta de origem (e só foi descoberta a sobrevivência de Watney quando procuraram pelo seu corpo morto para que não aparecesse nas câmaras em futuras missões) é que a força coletiva do planeta – organizacional, intelectual e técnico-científica – também a ele se junta para o trazer de volta ao mundo no qual será sempre um humano diferente: um terráqueo extraterrestre, ele que agora é também um marciano. Apesar de todas as (ainda mais) extremadas dificuldades, entre as quais se enumeram a destruição das colheitas e a explosão da sonda que lhe iria levar mantimentos, Watney e todos os seus pares, conseguem o impossível: trazê-lo para casa. E com todos os ultra-obstáculos ultrapassados, ele – que ascende quem nem um “Homem de Ferro” até junto da sua Comandante Melissa Lewis (Jessica Chastain) – é o perfeito exemplo da resiliência humana…e marciana.

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