«Pinóquio» – Desta vez um filme que não mente sobre o seu legado

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O amado livro infanto-juvenil (mas de contornos negros) do toscano Carlo Collodi, “As Aventuras de Pinóquio”, que muitos de nós o recordamos como a animação da Disney em 1940, foi fruto de muitas imaginações, readaptações e sobretudo tentativas em live-action. De facto, o enredo é agora devolvido à sua terra natal (antes da versão americanizada de Guillermo Del Toro chegar), pelas mãos de um dos incontornáveis autores italianos no ativo (Matteo Garrone), no qual deparamos com um novo propósito do conto, o da redenção.

É cruel regressar a 2002, quando no auge da sua popularidade, o ator e realizador Roberto Benigni (5 anos depois de ter vencido o Óscar em “A Vida é Bela”), decidiu embarcar numa revisão de “Pinóquio” em ares de Fellini cansado. O pior é que o ator, na altura com os seus 50 anos de idade, assumiu-se como o próprio boneco de madeira que sonhava ser menino de carne-e-osso, deixando o espectador à mercê da sua descrença. O resultado foi embaraçoso e ridículo levando Benigni a um evidente estado de desgraça (nem mesmo a regressão com “O Tigre e a Neve” em 2005 o conseguiu erguer à sua anterior ribalta). Portanto, vermos aqui como Geppetto, o carpinteiro responsável pela criação da marioneta sem fios, entende-se como um gesto de misericórdia por parte de Garrone que funciona numa espécie de “refresh” à igualmente exausta e faminta personagem.

Quanto a este “Pinóquio”, com as promessas de uma fidelidade ao tom do conto original (desprendendo de qualquer vínculo imaginativo com a dominante animação do estúdio do Rato Mickey), somos envolvidos num devaneio que preserva a sua ingenuidade e moralidade sufocante, dois ingredientes ao serviço de uma fábula igualmente austera e ambiguamente gótica que joga oscilantemente com uma fantasia interveniente mas naturalizada. Aliás, o realizador havia tomado notas no seu anterior e exuberante “O Conto dos Contos” (“Il racconto dei racconti”, em 2015), uma adaptação de um conjunto de histórias de Giambattista Basile, de como representar um imaginário apenas traduzido na voz de trovadores, o misticismo bruto e o desencanto em relação ao seu próprio “encantamento”.

Com “Pinóquio”, é aplicado uma alma dignamente rústica no tratamento desta mesma fantasia, e por si, um curioso reflexo antropomórfico na ambiência que as reduz como meros signos de um improvável coming-of-age. No reforço dessa mesma aura, um virtuosismo no sector dos efeitos visuais, desde a caracterização aos esforçados CGI (que nunca tomam a narrativa como gratuita) que concedem a credibilidade deste mundo, demasiado encharcado para a nossa devida contemporaneidade.

É um objeto sem esplendor mas com afinco, esculpindo um protótipo do verdadeiro coração de “Pinóquio”, a fim de dar o devido descanso às lentes disnescas que imperam na nossa cultura.

«Pinóquio» – Desta vez um filme que não mente sobre o seu legado
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