“(O filme) é um processo, uma evolução, uma construção das nossas sensibilidades, e das nossas percepções, e precisamos de perceber que às vezes temos que mudar a nossa abordagem conforme a jornada se desenrola”.
Quando as obras de arte nos tentam mostram a realidade nua e crua, tal como ela é, no fundo, há que haver, no mínimo, uma espécie de gratidão de um sentido por parte do espectador. Após o visionamento (atento) deste filme, há um sentimento de vazio (irreparável) que não se consegue facilmente preencher.
Estamos perante uma rapariga aspirante a realizadora com reconhecimento, Julie (interpretada por Honor Byrne) aluna de cinema, expert cinéfila, é uma artista frustrada, intermitente e completamente submissa ao exterior, nomeadamente ao seu companheiro, Anthony (interpretado por Tom Burke). Julie está numa altura instável da sua vida, e de acordo com as vicissitudes do seu dia-a-dia, vai mudando os títulos da sua obra de forma regular e declamando a sua escrita ao longo do enredo – sempre, claro está, enquadrado com a problemática do filme. O seu objectivo, ao longo da obra, é conseguir imortalizar a sua mensagem num filme que a traduza a si mesma.
O casal tem uma relação interessante, mas regida por futilidades (apesar dos excelentes diálogos entre eles, que, sejamos francos, constituem, a par das aulas sobre cinema de Julie, o pináculo intelectual da obra. Isto porque Anthony é toxicodependente, e talvez pela sua personalidade mais duvidosa, é capaz de controlar Julie e subjugá-la aos seus caprichos. Anthony é um namorado evasivo, conflituoso q.b., enquanto que Julie é sensível e dócil – mas não confia totalmente nele. Numa conversa com Julie sobre o cinema em geral, e a sua essência em particular, Anthony diz: “Não sabemos o que dá dentro da cabeça ou do coração deles (dos realizadores). Nós (espectadores) não queremos apenas ver a vida a desenrolar-se; queremos ver a vida a ser experimentada: dentro dessa máquina (interior). Acho que nisso somos todos iguais”.
Importa realçar o contributo da realizadora Joanna Hogg (conhecida já por trabalhos como “Unrelated” [2007], “Archipelago” [2010] e “Exhibition” [2013]) a verdadeira protagonista deste amplo sucesso criativo, com uma escrita fabulosa, uma direcção audaz, pautada pela simplicidade e com um argumento que não dá, de todo, palmadinhas nas costas. Joanna Hogg, a mestre da ante-câmara, é o maestro das reconfortantes vicissitudes da película – que, como um todo, é uma lufada de ar fresco (humano). Os sons, os silêncios, as cores, a simplicidade dos cenários e a sabedoria e intelectualidade que esta obra transpira e inspira dá um relevo artístico indescritível à obra.
Julie, apesar de tudo, é inteligente, audaz, ambiciosa e obstinada. O real problema, entre muitos, é que Anthony, arrogante e egocêntrico, consegue trazer à sua vida uma instabilidade incrível, irreparável. Apesar do consumo exagerado de heroína de Anthony, ele consegue fazer, literalmente, o que quer de Julie; tem uma dominância arrebatadora. Sendo Julie algo dependente financeiramente da mãe, Anthony aproveita-se dela, que se deixa levar pela dominância e pela ingenuidade; tem muita pressão em cima de si, e carece de amor (próprio). De frisar que as cenas de ressaca por parte de Anthony pós consumo de drogas são, verdadeiramente, estonteantes.
Nesta fase, Julie descora o curso e não investe no processo criativo. Até que chega ao seu limite, não reconhece Anthony e manda-o embora, pois não havia nada a fazer quanto ao seu estado degradante de boémia. Portanto, Julie vai mantendo o foco na sua obra, nas aulas, e há que dizer que as cenas das gravações do seu filme são dignas de realismo e autenticidade.
Os cenários vão ficando cada vez mais negros e sombrios, uma metáfora da vida, mas onde nem por isso se deixa de crer e acreditar. Estamos perante um romance bastante intimista, onde há espaço para amar e compreender o outro, mas também para nos agarramos à superficialidade do Ser. Por esse motivo, importa entender a palavra que dá título à obra, «Souvenir»: tudo o que seja tradicional e característico, e que consiga representar a cultura (imaterial) de um lugar (físico ou espiritual). Aí temos o carácter de familiaridade da película… tal como a definição de arte de Tolstoy, segundo a qual “nós simplesmente temos uma sensação, e através de sinais externos comunicamo-la a outro eu”. É neste contacto (ligação) permanente que encontramos a índole eterna da obra. Desta forma, temos mais um argumento soberbo, que fecha a cortina de forma sagaz, deixando, de forma clara, em aberto a sequela.
“The Souvenir” tem um efeito quase catártico, mas também ele melancólico no processo de introspecção. É um filme com muita dor, mas que consegue encontrar, com inteligência e naturalidade, o seu caminho.