Olhar o monstro: todos os filmes da saga “Alien” são acerca de se estar perante ele, a figura negra, o grito arranhador, o tom agudo, a tremura dos seus líquidos acídicos. Todos o conhecem. Nas suas variantes de ser o mesmo monstro. Uma figuração de alguns dos mais horríveis medos biológicos contemporâneos: a invasão do corpo, a transformação do corpo, a erupção através do corpo. Mas como poderemos olhar para o conjunto dos filmes (os de forma longa) que, com o acréscimo de “Alien: Romulus” são agora sete? Não será também ele um longo filme e o seu próprio monstro, porque é grande, porque assustou e assusta, porque é um enredo fílmico multi-partido e multi-geracional e instigador de uma “cinefilia pop” que se mantém viva e que também nunca realmente vai embora – tal e qual a sua figura tutelar – e para o qual se deva hoje olhar, e particularmente, pelo prisma do que este último volume lhe traz? Na sua sétima posição – em termos de cronologia de produção – o que é este “Alien: Romulus”? Um meta-filme sobre todos os outros que o precederam? Uma homenagem capaz de referenciar todas as outras partes da septologia? Um respeitoso “revamp” construtivo de um possível novo posicionamento da franquia? Mas ainda uma adição relevante a um conjunto de filmes que fala sobre outras coisas que extravasam a sua mera lógica de género? Ou é o terror espacial – feito de monstros que não morrem – ainda uma forma de se falar das diferenças de classe, dos modos e horrores da maternidade, da expansão sideral de um exo-capitalismo inumano e destruidor que nada quer saber de corpos mas que deles faz uso cego? Talvez ainda o seja.
Não há santidade em “Alien: Romulus”: tudo é obscuro, não se vê céu, não há azul, a luz é amarelo-alaranjada, de luminosidade baixa, a colónia é em si mesma uma (primeira) cave porque é uma terra fechada – no seu cimo – pelas nuvens que lhe são o teto-abóbada onde se embate e onde se tem que se forçar uma passagem ou uma saída. Abaixo estão as minas, as caves ainda mais abaixo, onde se cultiva e se espera a morte por fumos e gases, sobre-trabalho e sobre-aproveitamento. São os níveis dessa não-santidade: os mais abaixo, os de um morrer certo e temporalizado, numa mineração de valor-lucro e de corpos que o fazem e as de cima, onde se pratica uma agricultura que só pode ser uma de artificialidade porque luz natural não há para moldar e fazer crescer. É uma economia de exploração, de subserviência e de não subsistência que rege as condições desse contrato-promessa da morte, sempre a ser estendido, sempre a ser feito não cumprido, nem que seja por perfeito aumento informático, teclado por detrás do vidro, quando já está ele acabado. Não há santidade naqueles que sabem que não podem ser santificados pela auto-virtude, porque não há nenhuma à sua volta. Se em “Alien: O Oitavo Passageiro”, a tripulação da “Nostromo” se diferenciava pelas diferentes quotas que haveriam de receber no fim da viagem, em “Alien: Romulus”, não há nada para dividir, nada há para receber no fim, porque não há finalidade que se possa antever. E quando não é dado nada, é necessário tomar – numa postura proletária, na revolta silenciosa e escondida contra a mega-corporação subjugadora – os meios de libertação social e pessoal (e sobretudo esta) a que os trabalhadores-operários (alguns, pelo menos) da colónia tanto aspiram.
A tripulação de seis, constituída por Rain (Cailee Spaeny), o andróide Andy (David Jonsson), Tyler (Archie Renaux), Kay (Isabela Merced), Bjorn (Spike Fearn) e Navarro (Aileen Wu) tem só menos um membro do que a que tinha a “Nostromo”, mas tem a sua diferença na idade: à maturidade dos tripulantes em “Alien: O Oitavo Passageiro” opõe-se a juventude dos que estão na “Corbelan IV” de “Alien: Romulus”. A Weyland-Yutani Corporation (a omnipresente e nefasta “Companhia”) oprime aqui mais cedo, começa a usar-se dos corpos mais precocemente. A procura de uma melhor situação – com a passagem para Yvaga, um planeta independente à Weiland-Yutani e que está a uma distância de nove anos de viagem – leva-os a quererem subtrair os criotubos de hipersono (fundamentais para se manterem durante tanto tempo no espaço) que estão numa nave abandonada que surgiu inesperadamente na órbita do seu planeta. Mas, na saga “Alien”, a necessidade e o engenho não-virtuosos, ainda que bem intencionados – e com os quais se concorda, dada a premissa de onde partem os que querem algo melhor para si – são sinónimos de perigo, horror e morte.
“Renaissance”: assim se chama a estação espacial que abordam. A renascença do humano, se diga. Lugar do tecnológico e da procura de uma nova forma de obviar ao biológico que está em decadência. É um laboratório de e para a morte, na esperança que venha a ser um caminho para o prolongamento e reforço da vida humana. Mas os que abordam a estação nada sabem sobre isso. Não há sinal acústico que continuamente chame, somente a necessidade não cuidada e muito menos temperada. E é essa necessidade de resolver os problemas encontrados que os leva de uma ponta a outra da estação: a falta de combustível para os criotubos leva-os até onde nunca deveriam ir. O que estranhamente e até sobranceiramente acharam que seria um “heist” limpo e rápido, ainda mais rapidamente se transforma no horror dos corpos a serem perseguidos, inseminados, rompidos e sangrados. Sem santidade, para lá do bem e do mal.
O xenomorfo é função do corpo enquanto perfeição estrutural. Isso foi o que afirmou o sintético Ash em “Alien: O Oitavo Passageiro”. Não conhece outra coisa que não seja o instinto de auto-sobrevivência e de continuação/multiplicação. Serve o propósito de unicidade – sobreviver e continuar ele próprio – para poder servir o ainda maior fim de inseminar a possibilidade do segundo, dos quartos, dos oitavos xenomorfos e assim por diante, até à infestação total do espaço que tomam. Se há congelo, ele hiberna, se não há possibilidade de vida, ele subtrai-se à mínima expressão física de vivência. E assim temos o nosso “Big Chap” (o de 1979) incrustado na sua própria rocha espacial, no detrito que o esconde, mais ainda com o mínimo de vida para poder trazer, inevitavelmente, a morte a quem o rodeia. Por isso a estação está vazia, por isso não há corpos humanos, tudo ele destruiu, ainda que à custa de ele próprio ter sido igualmente crucificado (numa irónica forma de o suspender quase santamente, ele que nunca poderia saber o que é santidade). O que restou dele é o rasto da sua prole, quem terá ele inseminado em primeiro lugar não se sabe, mas o que ficou é o resultado da sua primo-infestação, do seu re-iniciar do ciclo de multiplicação de xenomorfos, à custa da carne dos sempre incautos humanos. O que fica é a dormência e a espera de uma colmeia, que aguarda sempre na cave ou no corredor longo, para lá da curva, para lá do foco de luz que desenha mais um corpo que caminha para a sua aniquilação ou para a sua utilização como hospedeiro de mais um invasor e como tecido alimentador do seguinte corpo monstruoso. Horrífico ou belo, a perspetiva é tão inversamente amoral como o é positivamente científica, digam-no ainda Ash ou Rook (aparência sintetizada de Ian Holm e voz de Daniel Betts), que o “santificam” na simplicidade da sua atuação biológica (nada para lá do existir) enquanto que todos os outros o têm como a expressão – física, sensorial, gritante – do mais profundo temor e terror.
Se o xenomorfo é a perfeição, o humano é a imperfeição. E é na busca do corpo impossivelmente perfeito, capaz de se regenerar continuamente, que à sobranceria humana se revela o mais claro dos enganos: há sempre um xenomorfo no módulo de que se abre a porta, no escuro e a aguardar. Somente o hermético pode-o fechar (pelo menos, em “Alien Romulus”, o parece conseguir, ainda que não em todos os filmes da franquia). O espaço mais iluminado da estação, feito de brancura, é onde a peste se encontra: o líquido negro é a possibilidade de cura e até do refazer do corpo, mas no fim é sempre destruidor ou criador da forma-corpo aniquiladora. O xenomorfo é perfeito porque não tem moral (e não sabe o que é) o humano é imperfeito porque é imoral (sabe o que preciso para ser moral, mas escolhe não o ser). Um procura sobreviver, o outro procura lucrar com o comercializar da mais avançada das medicinas, vender a rejuvenescência do corpo humano pelo material bio-líquido que subtrai do corpo dos xenomorfos. Eles, os xenomorfos, não se matam por uma percentagem, tal como dizia Ripley em “Aliens: O Recontro Final”. Daí que a questão é também uma de posicionamento ético: porque é que se continua a tentar extrair o lucro biológico (medicina curativa, mas mais claramente para armas biológicas, como está subjacente no que Rook diz), quando o corpo do qual se quer extrair acaba por ser antes o inseminador e o matador? Não fica claro que é o objetivo que se prejudica a si mesmo? O mal que se quer fazer acaba sempre por retornar aos que nele insistem. E todos os filmes seguintes o mostram como comprovado. Mesmo quando se consegue furar ou fazer explodir um, fica sempre a possibilidade do um fino liquido, negro como sempre, uma réstea biológica de poder vir a fazer renascer o corpo-xenomorfo. No fim, a horrenda figura xeno-humana, tão parecida com outros corpos finais da franquia, é sugada para o espaço, mas algo dela poderá ser ainda colhido, porque ali ficará, à espera, a vaguear no espaço, à espera de uma outra oportunidade, um outro filme.
E como este filme comenta sobre todos os outros “Alien”? Conjuga, cita, conflui, re-tece, na sua compressão de todos os modos que incluem as formas de fazer de todos os restantes: é força de ação, é espera de terror, é o grito e a geometria de imensos corredores, é a falta de luz, é a figura da intersecção de linhas e de curvas que parecem salvar mas que só levam à emboscada, é sobretudo um trabalho de louvor e amor pelo conjunto dos filmes que trouxeram ao mesmo tempo a construção de um figura-terror, reconhecível como “imagem-si” notoriamente cinemática do que é o estado agressivo puro (para além da moral, se repita) e que, ao mesmo tempo, sempre se mostrou capaz de tematizar para além do puro género com que cada uma das suas partes-filme se apresentou. Poder-se-ia incluir, num filme de terror, um olhar sobre o tema da maternidade e da nascença, de um tal modo como a deixar implícito que o trazer ao mundo é um ato de explosão do corpo e que o nascente acaba por tirar a vida ao que faz nascer? E que o corpo nascido – monstruoso, a crescer como tal, rapidamente, à procura dos modos de nova reprodução – é tão filho do inseminador alienígena quanto o é do humano hospedeiro? O monstro é descendência, tão válida como qualquer outra, daquele através do qual rompeu? “O filho de Kane”, disse Ash, acerca do primeiro de todos, o horror inicial, a que agora se regressa, para se reiniciar o ciclo, para reformatar a partir da forma original. Não é por acaso que Fede Alvarez mais cita “Alien: O Oitavo Passageiro” e “Aliens: O Recontro Final” como sendo as balizas através das quais ele encena a sua entrada da franquia. Terror e ação, são os modos que perfazem o filme, numa lógica de regresso à pureza dos primeiros dois filmes, que distam 44 anos e 37 anos, respetivamente, de “Alien: Romulus”, para uma aplanagem e recentramento dos seus discursos e recursos de encenação, e mesmo que ainda referindo os outros quatro filmes da série, o faz por linhas de diálogo, regresso a personagens ou mescla de corpos de personagens e cenários-tipo (reconhecíveis aos que conhecem a história fílmica completa), mas que acaba por pressupor uma barreira para com essas partes da saga, nessa escolha clara de a “querer” recomeçar, para outros que agora estejam a nela entrar.
A indeterminada leveza de “Alien: Romulus” – paradoxo com tudo o que a franquia sempre foi – possibilita que ainda haja o terror nela, mas um tipo diferente dele, mais de um tempo como agora, e para o futuro da sua própria formulação enquanto continuação daquilo que ainda possa vir a ser. A juventude das personagens – claramente indefinidas entre o fim da adolescência e o estado adulto ainda jovem – não carrega o mesmo peso dos trabalhadores maduros e sofridos que se vêm perante o niilismo de um ser que só mata, mas ainda traz o mesmo sentido de um esquerdismo “ativo e orgulhoso” que luta contra o grande capital, que vai acima e tenta roubar o que pertence à corporação que os explora, mesmo que tal não fique aparente para a grande demografia jovem para o qual este filme claramente foi feito. Talvez por isso, se deva olhar para este “Alien: Romulus” como o filme que olha para o que está para trás para refletir sobre qual é a forma futura de um filme “Alien”, para pensar sobre como se pode incluir os temas que o foram matizando e aprofundando – o questionamento da humanidade, a violência e invasão corporal dos xenomorfos como metáfora sexual, o militarismo, a tecnologia gélida e inumana, a ganância do extremo-capitalismo, o niilismo religioso e apocalíptico, o feminismo de combate, a luta de classes, a perversão da maternidade, o perigo do ato criador – nas seguintes entradas na série que ainda venham a ser produzidas.
Olhar para a série “Alien” com os olhos dos mais veteranos ou com os olhos dos neófitos será sempre um interessante exercício de meta-cinefilia (como já fazia “Alien: O Regresso”, olhando ainda mais agudamente para o que era um filme “Alien”), ou não tivesse a franquia a chegar ao seus 50 anos de existência, com Ridley Scott a produzi-lo, o que afirma essa “idade” e essa “carreira”, já que a sua ligação vem de tão longe: novos filmes clamam novas formas de fazer, para esses olhares que são de outros, mais jovens, tal como as personagens do filme. Que possam eles, esses novos olhares se religarem – conhecendo o que está para trás – com o caminho que começou em LV-426.