Audrius Stonys e as potências políticas do documentário poético lituano

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Os documentários lituanos convidam o espectador a contemplar e a experienciar a vida interior de um ser humano apanhado no meio das vicissitudes da turbulência da história.

Meno Avilys, “Cinematic inclusions: Time, People, and Places”

 

É com o imperialismo soviético em processo de dissolução que Audrius Stonys dá início à sua carreira de realizador. Stonys teve como professor Henrikas Šablevičius, um dos nomes maiores do movimento cinematográfico que se denominou o “documentário poético” dos realizadores lituanos dos anos 60. Este estilo poético não foi bem recebido pelo público lituano dessa época, que via nesses filmes um excesso de lirismo, que não seria capaz de retratar, com autenticidade, a dura realidade do seu passado. Isto vinha na contramão do cinema «da Estónia e da Letónia, cujas produções recaíam maioritariamente sobre registos documentais de estilo jornalístico e de denúncia direta das imoralidades e dos crimes cometidos pelo regime soviético» (Vieira, 2018, p.35). Apesar desta receção, os realizadores lituanos não deixaram morrer este cinema e acreditaram no seu potencial. Audrius Stonys, em conjunto com realizadores como Šarunas Bartas, Arunas Matelis (entre outros), foram os responsáveis por dar um novo fôlego ao documentário poético lituano, durante os anos 90. Este estilo poético estaria marcado, segundo Šukaitytė, por:

«(…) utilizar filtros estéticos enquanto contavam histórias sobre a vida real, sobre pessoas reais e os seus desejos; em segundo lugar, pretendiam alcançar uma certa objetividade e veracidade, sem quaisquer ambições de contar ao espectador a verdade de uma forma explícita, pois a sua realidade é simbólica – não podendo ser nem verdadeira, nem falsa». (Šukaitytė, 2010, p.24-25 citado por Vieira, 2018, p.36).

É precisamente esta estética do simbólico – com todas as ambiguidades que ela acarreta – que podemos encontrar nos filmes de Stonys. O seu primeiro trabalho enquanto realizador “Open The Doors To Him Who Comes” (1989), mostra já esta procura por uma pulsação de vida dentro das ruínas deixadas em solo lituano. O realizador lituano mostra como uma pequena vila lituana, apesar da visível aridez dos seus solos, que a torna signo de uma terra esquecida pelas distâncias burocráticas do ex-regime soviético, contém dentro de si todas as realidades concretas com que os seus habitantes resistiram ao peso da força totalitária que sobre eles recaiu: as igrejas, os animais e a simples natureza que os cercava. Stonys parece, com este seu primeiro filme, mostrar que há um futuro novo e que a matéria e as pessoas que filma são essas portas abertas, prontas a recebê-lo. Para mostrar essa abertura, prefere não entrar em quaisquer explicações ou denúncias, como se as coisas também tivessem uma linguagem própria e dentro de si já anunciassem essa liberdade de um país que se deve reerguer. É esta questão “mais política” que Stonys, em conjunto com Arunas Matelis, abordam na curta “The Baltic Way” (1990). A 23 de agosto de 1989, dois milhões de pessoas criaram um cordão humano para protestar contra o pacto Ribbentrop-Molotov, assinado 50 anos antes, quando os soviéticos começaram a compactuar com o regime nazi, repartindo os países do Báltico em esferas de influência das duas partes. Este cordão atravessou a Lituânia, Letónia e Estónia, ficando para a história como um movimento político singular que mostrava a injustiça daquilo que foi feito a um povo que revelara, naquele gesto, o potencial político do amor. Embora este filme seja onde a política se faz notar de forma mais direta, não é por isso que devemos entender que seja o mais político dos seus filmes – entendendo esta forma política como uma “política da estética”, pensada por Jacques Rancière. Esta política vive dentro das suas imagens e não em algo que se acrescenta a elas para lhes dizer o sentido. A poesia das imagens de Stonys dá espaço a outras realidades que não se mostrariam caso houvesse uma voz explicativa que guiasse as nossas interpretações. Aqueles que aparecem são seres cujo mínimo gesto, por mais inserido que esteja no seu quotidiano – e por mais degradado que este nos pareça -, mostra ainda uma potência em ato, uma forma de resistência. É neste sentido que Rancière usa o cineasta Pedro Costa como exemplo de uma política da estética, afirmando:

«(…) a questão política é antes de mais a da capacidade de quaisquer corpos tomarem em mãos o seu destino. Pedro Costa concentra-se também na relação entre a impotência e a potência dos corpos, na confrontação das vidas com aquilo que podem» (Rancière, 2010, p.118).

Não se trata de denunciar algo, de mostrar ao espectador a saída de uma situação de ignorância para colocá-lo em marcha, trata-se de lançar o olhar para dentro de uma circunstância que é dada a ver na sua realidade própria. São essas formas de existência que estão em jogo, cada uma dentro da sua singularidade, das suas vicissitudes, das suas errâncias e conquistas. Sobre este tom existencialista desta nova vaga do cinema lituano, Pipinytė diz-nos: «todos demonstravam um desejo notório de falar sobre temas existenciais. Nestes filmes, são lançadas questões relativamente à solidão, ao significado da vida e à provisoriedade da existência” (Pipinytė, 2012, p.14-15 citado por Vieira, 2018, p.37). É a existência destas pessoas que se quer fazer sentir pelo filme e, Stonys, através dos pequenos silêncios que vão preenchendo o quotidiano destas pessoas, consegue captar uma espiritualidade inesperada. Esta solidão existencial está bastante presente naquele que foi um dos filmes da retrospetiva que mais me impressionou, “Earth Of The Blind” (1992). A câmara de Stonys acompanha três histórias: uma vaca a caminho do matadouro, uma idosa cega que vive numa cabana e que cuida dos seus animais e um cego que desce uma ladeira numa cadeira de rodas. A forma como o realizador desfaz as tradicionais formas narrativas para colocar lado a lado estas três realidades demonstra a sua despreocupação moral em colocar cada tema no seu sítio, atribuindo-lhes sentidos explícitos. Parece não existir sequer finalidade alguma associada aos seres que escolhe filmar. Dentro da nossa expectativa, as vacas simplesmente olham algo ou algures enquanto pastam, mas Stonys, através da demora dos seus planos, consegue captar nesse olhar uma certa interioridade. O seu filme é uma ode à passividade, onde esta se torna enobrecida pela forma como Stonys capta a natureza bruta da montanha onde essa passividade habita. Perante circunstâncias tão agrestes, parece-nos que a vida destes seres foi interrompida algures e que cabe à câmara de Stonys tornar visível essa vitalidade – não alguma que lhes falte mas aquela que eles sempre possuíram. Quando questionado, na entrevista após a sessão, sobre a presença da espiritualidade nos seus filmes, o realizador respondeu que, para si, a espiritualidade vive dentro destas pessoas por ele filmadas, na sua relação simples com o quotidiano que as circunda – dando como exemplo a personagem da idosa cega que vivia sozinha com os animais.

Em “Antigravitation” (1995), Stonys faz mais um retrato do mundo rural, centrando-se na importância das igrejas durante o regime soviético, nas pequenas vilas isoladas. Como o realizador referiu na entrevista, as igrejas eram os locais onde a população sentia que podia escapar, por momentos, ao regime político vigente. O realizador inspirou-se em questões como: “como é o mundo visto do telhado de uma igreja? O que mantém estes homens suspensos entre o céu e a terra?” Stonys tem uma visão clara sobre a humanidade na sua relação com a espiritualidade: ela não habita na pura materialidade, mas é nessa dimensão imanente – onde o realizador coloca a sua câmara – que algo mais se dá a ver. No seu filme, as pessoas procuram o transcendente através do gesto simples de subir: uma idosa que sobe as escadas da igreja que mal se sustentam; um homem que trepa uma chaminé ou um outro que trepa uma rede. Perante um homem que gravita cada vez mais para na proximidade da superfície daquilo que é material, o que o faz habitar indelevelmente a exterioridade, é necessário dar a ver a possibilidade de uma força antigravitacional, capaz de fazer os corpos ascender até um ponto onde já não veja apenas a matéria pelo seu exterior, mas que passe para o lado de dentro dela. Talvez não se alcance um topo, um fim, talvez ele nem exista, mas a subida espiritual que Stonys num tom litúrgico nos dá a ver como essa ascensão do olhar até um ponto de vista mais elevado tem o poder de captar algo mais do que uma matéria nua.

O último filme da sessão, “Alone” (2001), narra a viagem de carro de uma criança para uma visita à sua mãe, que se encontra num estabelecimento prisional. Stonys filmou a ida da criança sem nenhuma manipulação, isto é, apenas acompanhou a viagem da criança, tentando posicionar a câmara dentro do carro, da melhor forma.  Os planos do rosto prolongam-se na sua duração para aí encontrarmos os afetos que vão aparecendo pelas suas expressões. É na naturalidade dessa expressão, enquanto vai olhando pela janela do carro para a paisagem que passa, que reside a força emocional do filme. A inocência do olhar não oferece pistas sobre a finalidade do caminho que percorre: uma distância imposta que a afasta da sua mãe. Vemos apenas uma criança sentada num carro, sozinha, com um olhar tão calmo cujo modo contemplativo reflete apenas o mistério dos seus pensamentos. Stonys confessa a sua inspiração na curta “Ten Minutes Older”, de Herz Frank, que foca o rosto de uma criança durante 10 minutos. Durante esses 10 minutos de filme, o rosto da criança vai manifestando várias emoções, expressando medo, alegria curiosidade. Este filme foi também inspiração para Wim Wenders, que foi responsável pelos projetos: “Ten Minutes Older: The Trumpet” (2002) e “Ten Minutes Older: The Cello” (2002), onde Wenders convocou vários realizadores para darem a sua interpretação cinematográfica de 10 minutos de tempo.

O realizador lituano mostra-nos como o cinema pode ser político preservando uma poética das imagens que revela a relação íntima entre o homem, a terra e o céu. Toda a beleza que nos chega pela câmara dos realizadores lituanos só se torna possível quando já se experimentou das nuvens retóricas da política o seu sabor amargo para se focarem nos silêncios que ficaram contidos numa paisagem desgastada e esquecida, na vida sensível que ainda pulsa no interior de cada ser.

É certo que um dos impulsos que levou à adoção do estilo poético por parte destes cineastas terá sido a possibilidade da visibilidade além-fronteiras e, neste sentido, Teresa Vieira afirma:

“Ainda que as obras realizadas não fossem criadas tendo o público nacional em vista – o que, para Ingvoldstad, implica a destruição do conceito de cinema nacional lituano -, a realidade é que estas foram o cartão de visita criado pelos realizadores – de forma consciente ou inconsciente – para o universo do “outro lado da Europa”, para a realidade europeia que, desde há diversas décadas, os concebia enquanto um outro culturalmente incompreensível e distante” (Vieira, 2018, p.38).

Porém, esse impulso que procurou uma maior visibilidade, não só veio mostrar à nação de onde brotaram toda a riqueza de significação e vitalidade plasmadas no modo verdadeiro como retrataram a sua realidade, como veio revelar um cinema cujo alcance universal se encontra precisamente nessa forma fílmica. O filtro estético destes cineastas convoca uma poesia das imagens para mostrar que a política começa num plano ontológico anterior ao discursivo, onde as coisas tocam umas nas outras, dentro de um plano de imanência que apenas conhece os movimentos vitais de seres que, antes de falar, respiram. E talvez seja isso que o cinema documental poético lituano pretendeu filmar antes de tudo: formas de respirar.

 

Referências bibliográficas

Meno Avilys (2012). Cinematic inclusions: Time, People, and Places. (L. Kaminskaitė-Jančorienė, G. Žulytė & L. Černiauskaitė, Eds.). Vilnius: Meno Avilys. Obtido de http://static.eu2013.lt/uploads/documents/Katalogas_Kino_inkliuzai.pdf.

Kancerevičiūtė, A. (2016, Abril 23). Documentary filmmaker Audrius Stonys: Showing the invisible. Obtido de http://en.delfi.lt/lithuania/culture/documentary-filmmaker-audrius-stonys-showing-the-invisible.d?id=71069414.

Rancière, J. (2010). O Espectador Emancipado. Lisboa: Orfeu Nego

Vieira, T. (2018). Cinema Lituano: formas e temáticas do Cinema Contemporâneo na fase de transição URSS/pós-URSS (Master’s thesis, Universidade Nova de Lisboa). Retrieved from https://run.unl.pt/bitstream/10362/32395/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf

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