Kenneth Branagh estava determinado a fazer um filme sobre Belfast, ambientado em Belfast e até chamado de Belfast porque a cidade teve um grande impacto em sua vida e carreira.
Quando os Troubles começaram em Belfast em agosto de 1969, Kenneth Branagh tinha oito anos. Segundo ele, até hoje se lembra de ter se escondido debaixo de uma mesa com sua mãe e seu irmão mais velho, enquanto as pedras do calçamento eram arrancadas da rua e arremessadas pelas janelas de seus vizinhos católicos. Contudo, felizmente, os problemas não foram os únicos argumentos alicerçantes no enredo do filme mais pessoal do irlandês.
Descrevendo-o como “autoficcional” em vez de “autobiográfico”, o maior ator shakespeariano em atividade, argumentou e dirigiu o filme que o segue quando menino e a luta de seus pais tentando decidir se deviam deixar a Irlanda do Norte para uma nova vida, escapando dos problemas da guerra civil local – Branagh era de origem protestante e da classe trabalhadora.
Nessa perspectiva, a família Branagh emigra para a cidade inglesa de Reading, expulsos. Observando bem, Belfast é dedicado aos que ficaram, aos que partiram e a todos os que se perderam em meio ao caos da guerra.
Perplexidade tardia:
Nesse sentido, como nos lembra o filósofo e teólogo Mario Sergio Cortella “o tempo não é só passagem, é, também, esgotamento, restando para muitos apenas alguns horizontes de perplexidade tardia”. Essa perplexidade tardia é muito presente na narrativa de Branagh. Tal perplexidade está contida também na cinematografia de Haris Zambarloukos.
Para tanto, o longa foi rodado principalmente em preto e branco muito limpo para sublinhar as ambições artísticas de Branagh, demonstrando o profundo investimento de Branagh no material, mas também sua luta para reduzir o tamanho de uma tela cinematográfica mais ampla para uma escala mais íntima e visceral. A composição das ideias de Zambarloukos é ótima, com bloqueios, enquadramentos e ângulos propostos para um filme visualmente interessante e nostálgico.
Sentimento de separação:
O realizador começou a trabalhar em Belfast em março de 2020. Nisso, ele sempre soube que a separação da Irlanda, no fundo era a separação de um sentimento estabelecido de saber quem era ele mesmo, quem assistir de forma aprofundada irá perceber que o longa foi o ato cinematográfico mais sensível e tocante de sua carreira, Belfast exala Branagh de forma sublime e densa.
Na obra, filosoficamente, é notável a sensação de que essa história é sobre separação, tanto que os personagens instigam a reconexão com algo que é permanente em nós. O que seria essa reconexão? Essa reconexão está dentro de nossos corações: é a saudade, a saudade de nosso lar, de nosso país, de nossos pais, de nossa vida e, acima de tudo, saudade nós mesmos.
Ele consegue ser pontual ao depositar essa sensibilidade no olhar pueril de uma criança. No entanto, esse exercício filosófico nunca alcança muito mais do que um objetivo básico, resultando em um prazer seguro para o público, que não consegue transmitir o impacto que essas experiências devem ter tido no próprio Branagh.
Desenvolvimento:
O desenvolvimento do enredo, a ambientação, os personagens, tudo é brilhante e impecável nesse filme. Mas Buddy brilha mais que todos os demais personagens. Ele segue inabalável em sua meta de ajudar os pais e os avós e, quando finalmente parece perder as esperanças, a vida mostra que sempre há uma saída, mesmo que ela não seja exatamente como a gente espera.
O filme trata de maneira belíssima e extremamente delicada, não de uma guerra, mas sim do relacionamento de uma família e do amor imenso que esse menino sente por seus pais. O que significa que você irá assistir a uma crônica leve sobre a vida de uma criança sonhadora dos anos 60, não um segundo “Em Nome do Pai” (1993).
O olhar de Buddy:
À vista disso, é louvável o objetivo de Branagh se ater apenas à perspectiva do menino, tanto que é nítido que o longa não queria pintar um quadro político da guerra civil – e não precisava. O filme é sobre o que o menino Buddy viveu em sua inocência.
Para tanto, o que ele viu foi uma intimidação em pequena escala, os primórdios de uma espécie de gangsterismo, e nessa fase ele não estava em condições de ver causas políticas superiores. Então, inevitavelmente, tem uma estreiteza de perspectiva.
Dessa forma, em seu argumento, o propósito da história é traduzir experiências individuais em experiências universais, tanto que os pensamentos e sentimentos dele são usados para envolver o público. Os dramas pessoais se tornam pontos-chave, não a guerra. Diferente dos filmes que frisam em detalhar o conflito civil, o filme de Branagh mostra com mais detalhes o lado das famílias que ficaram para trás. Falar de guerra é um assunto pesado, porém todo o clima é amenizado pela figura do menino Buddy.
A câmera acompanha bem de perto o personagem, que traz uma leveza grande para a história. Não podemos esquecer que esta é uma obra leve e que precisa ser atrativa para as famílias, então Buddy é o personagem perfeito para que isso aconteça. O jovem irlandês é um menino que se vê sozinho no mundo e possui uma visão bem infantil das coisas, às vezes até inconsequente.
Construção de personagens:
Sejamos sinceros, Branagh sempre acerta na construção de personagens, cada um dos personagens é bem escrito e representam algo que move e marca o menino, o que é muito interessante de analisar. Cada um reage de uma forma diante da guerra e é interessante observar o que essas figuras representam nessa situação.
O querido Buddy:
Buddy me encantou pela sua ingênua sinceridade e seu vigor. Com nove anos, ele não leva mais a vida confortável de antes e seu maior desejo é que as coisas sejam como elas eram. Ele teve que amadurecer rapidamente, pois teve sua vida impactada diretamente pela pressão social, política, religiosa, cultural e familiar. Nisso, a história mais pesada fica por conta dos personagens secundários (principalmente seu pai e seu amado avô), que mostram para o garoto, aos poucos, como a guerra influenciou cada um deles.
Há um trecho, por exemplo, que o pai dele é pressionado a lutar ao lado dos protestantes, em outro ele é ameaçado por agiotas, esses são apenas uns de muitos assuntos que são sérios, porém tratados com a leveza necessária, devido ao público preferencial do longa.
A guerra e o futuro:
Não é preciso acreditar que é certo e apropriado tentar explicar tudo o que aconteceu nesse período da história irlandesa. Apenas tente aproveitar a experiência de ser uma criança novamente, uma criança que ama seus pais, seus vizinhos, avós, amigos e irmãos. E, que acima de tudo, acredita no futuro.
Tanto que a mensagem do filme é resumida pelo pai de Buddy, depois que o menino pergunta solenemente se poderia haver um futuro para ele e sua colega católica. Pa diz: “Ela poderia ser um anticristo vegetariano, por tudo que me importa. Mas se vocês se respeitarem e forem gentis, eles serão bem-vindos à nossa casa em qualquer dia da semana”.
Então, na verdade, no fundo o filme é um apelo para o que o futuro reserva. O que esse futuro reserva?: comunicação aberta, compreensão, respeito, tolerância – todas as coisas que são fáceis de dizer e difíceis de fazer.
Sim, eu sei, demora um pouco para entender tudo isso, aliás, como falou o médico, diplomata, poeta e romancista brasileiro Guimarães Rosa, “não convém fazer escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro…”. Mas, o prêmio no final disso é paz e prosperidade. Acho que vale assistir essa preciosidade.