“Broker – Intermediários” – O Direito à Redenção

Broker-2022-1

A melancolia que atravessa “Intermediários” chega com a chuva que abre o filme. Ela cai com alguma intensidade. Preenche o espaço, mais ou menos vazio, da noite. A câmara está em cima. A urbanidade é de um país avançado. Uma jovem caminha sozinha. Silhueta contra o moderno fundo da cidade desenvolvida. Na sua vagareza, a elegância é insuspeita. Não a vemos claramente ainda. A câmara vai abaixo. A jovem sobe. Pelo meio da chuva a cair, o silêncio é grande. O que ela traz consigo, deixa depositado no chão. Fá-lo calmamente, suavemente. Quanto mais ela olha para o que se prepara para abandonar, mais o tempo dessa demora, tão carinhosa e tão corrosiva – para ela, que assim se o pressente – avança melancolicamente, porque de tal se o sente. Ela é Moon So-young (Lee Ji-eun). Na mesma lentidão com que desceu, caminhou e subiu, ela afasta-se.

Não longe, num carro descaracterizado, duas Detectives da Polícia, Soo-jin (Bae Doona) e Lee (Lee Joo-young) acompanham o movimento de So-young. Soo-jin encarrega Lee com a perseguição a Soo-young. E ela própria, num outro ato repleto do melancólico, vai até junto do bebé que a jovem deixou no chão. Pega nele e, com todo o cuidado, abre a “Caixa de Bebés” (“Baby Box”) e coloca-o – deposita-o – no seu interior. O momento é tão demorado e tão dócil quanto o foi, anteriormente, o da progenitora. Melancolia e docilidade, estado e modo de uma situação extrema: uma mãe que abandona um filho recém-nascido. Mas os lados do tabuleiro relacional ainda não estão todos definidos.

Para lá da caixa, estão os outros dois principais intervenientes de um melodrama a vir: Ha Sang-hyeon (Song Kang-ho) e Dong-soo (Gang Dong-won). Depressa fica claro que ficarão com o bebé para si, de modo a que o possam vender no mercado ilegal da adopção. Dong-soo apaga a referência vídeo do depósito de Woo-sung (Park Ji-yong), de forma a fazê-lo desaparecer do sistema institucional que o tomaria (a Igreja onde o primeiro trabalha, passo inicial de entrada na rede de orfanatos e no anonimato social) e o remeter à possibilidade de um outro acarinhamento que a sua mãe (aparentemente) não lhe quis proporcionar, junto de que mais abastado (à partida) seja. O pedaço de papel que Woo-sung traz consigo é o continuar de um pensamento melancólico: a mãe que jura regressar para o levar de volta consigo. A certeza da bondade subjacente à ilegalidade deste duo baseia-se exatamente nisso: como as mães nunca voltam, serão eles os cuidadores e entregadores – e lucradores intermediários – dos bebés a um futuro bem mais promissor. Por entre a ainda continuada chuva, as duas detectives seguem a carrinha de Sang-hyeon, no seguimento da sua operação de apreensão em flagrante delito.

Entre o abandono infantil, o comércio ilegal de bebés e o procedimento policial, o filme vive da melancolia que o energiza. Não triste, embora assim o pareça, não pregador, embora assim se pudesse esperar. A melancolia do filme é a sua equidade na falta: a todos falta algo, a todos pressupõe-se o vazio do abandono e da perda, aquela que urge preencher ou fazer desaparecer. Esse vazio é o da família, nas suas mais diversas formulações: a que Soo-young não pode ter com o seu filho recém-nascido, a que Sang- hyeon perdeu enquanto afastado da mulher divorciada e da filha, a que Dong-soo nunca teve e que nunca conheceu, já que a sua mãe também o deixou à porta de um orfanato, a que Soo-jin não parece dar muita importância, apesar de ter um marido carinhoso. Dessas faltas entrecruzadas se cria a mais estranhas das famílias – acrescida de uma outra criança, o muito perspicaz e desenvolto Hae-jin (Im Seung-soo) – feita dos que estão à margem do sucesso desenvolvimentista, dos que têm que ter negócios e atividades na economia paralela. A carrinha de Sang-hyeon, velha e mal fechada, passa a ser a carregadora das melancolias de todos aqueles a quem vida não correu da melhor forma. As que seriam a tristeza resultante e a menorização decorrente não se materializam, fica antes patente a fortitude – bem humana, por sinal – das falhas e erros, mas ainda os anseios e os impossíveis projetos dos membros dessa família improvável. É a carrinha que os leva numa road trip de cura e renovação, apesar de todo o funesto que impende fatalmente sobre eles (So-young matou o pai do seu filho, homem com quem se prostituía, Sang-hyeon cometerá um crime mortal para que, no fim, tudo se possa fundamentalmente resolver, Dong-soo deixar-se-á prender para assim libertar o bebé para um outro futuro). Sendo um melodrama policial, um policial melodramático ou uma comédia negra dos erros humanos – conforme se olhe para ele – por entre a fuga continuada e as intervenções desestabilizadoras das detectives que mais fazem intrigar a viagem, o que este filme mais afirma é a dignidade absurda com que todos se tratam – mesmo quando se enganando uns aos outros – como se, no fim, só houvesse essa necessidade de deixar algo de esperançoso no que, desde o início, sempre foi um percurso alimentado na falta dela.

No centro de tudo, sempre sentado, deitado, calado ou a balbuciar, o pequeno Woo-sung afirmou o poder da simples existência: está-se vivo e está-se no mundo e é isso o que mais vale. As peripécias, as inúteis conversas sobre futuros que não acontecerão, os momentos inusitados de lazer quando fugitivos à justiça, enformaram a relação filial destes marginais, construída e mantida, por mais evanescente que pudesse ser, contra o cinismo dos olhos fechados daqueles que nas margens os mantém. No fim, foi a própria Soo- young que arquitetou melhor as tramas em decurso, de modo a dar a guarda do seu filho à detective que sempre a prenderia (e que se mostrava fria à ideia de família, mas que tanto dela precisava, e mais ainda, necessitava de uma criança na sua vida, o que a jovem mãe tão bem percebeu). Ironia de toda a melancolia precedente. Por mais erros que se possam na vida cometer, a sequência final de Hirokazu Koreeda filma é – por mais fugaz que a possibilidade possa parecer – uma promessa de redenção. Uma a que todos têm direito.

Skip to content