Refletindo sobre o palmarés da 74.ª Berlinale, fica claro que o festival continuou seu legado de imprevisibilidade com a distribuição dos seus ursos. Assim como no ano anterior, quando Kristen Stewart deu o seu prémio maior para “Sur l’Adamant” de Nicolas Philibert, em 2024 o Urso de Ouro também foi concedido a um documentário. “Dahomey”, da franco-senegalesa Mati Diop, que ficou conhecida mundialmente pelo seu maravilhoso “Atlantics” de 2019.
“Dahomey” é uma colaboração entre França, Benin e Senegal que explora a decisão histórica da França de devolver 26 peças de arte roubadas pelos franceses do antigo Reino de Dahomey, hoje Benin. Em pouco mais de 1 hora, o documentário apresenta um narrador de voz eletronicamente distorcida com foco na trajetória do “Objeto 26”, uma estátua de bronze e madeira do Rei Ghezo. Este dispositivo narrativo, aliás, partilha muitas semelhanças com o utilizado no inclassificável “Pepe” de Nelson Carlos De Los Santos Arias, uma das várias “experiências” descobertas na Competição deste ano, e que acabou com o prémio de melhor realizador para Arias.
A atribuição do Urso de Ouro a “Dahomey” foi visto com algum ceticismo, numa competição que apesar de caracterizada por uma seleção mediana, incluía também algumas obras significativamente superiores ao documentário de Mati Diop. O filme oferece uma reflexão profunda sobre as consequências da colonização no imaginário coletivo, posicionando-se de maneira impactante no centro do debate atual sobre reparações históricas. Uma carta de intenções que, embora nobre, tende a sobrepor-se ao filme em si, que já chega com um carimbo de “filme importante”. Uma atribuição que lhe é conferida independentemente de suas habilidades formais ou artísticas.
Apesar de ser um filme sólido e de ter sido desenvolvido por uma realizadora de incontestável talento, “Dahomey” acaba por revelar-se um trabalho menor. Não apenas na economia dos seus 67 minutos, mas também por sua abordagem excessivamente convencional, predominantemente baseada nas falas dos jovens presentes num evento para a devolução das peças, e intercaladas com cenas das obras sendo cuidadosamente preparadas para o retorno a Benin.
O ouro a “Dahomey” provocou uma certa inquietação na imprensa alemã e suscitou debates sobre as prováveis motivações políticas do prémio; particularmente notáveis pelo fato de Mati Diop, uma realizadora negra, ter recebido o prémio das mãos de Lupita Nyong’o, a primeira presidente negra da história da Berlinale.
Numa cena do filme, um jovem especula de forma cética os motivos do Presidente Emmanuel Macron para retornar os artefatos roubados: “Vocês acham que ele realmente se importa? Claro que não. Isso é só para ajudar a limpar a sua imagem. É tudo política”. Uma cena que ironicamente se alinha com o discurso recente sobre as intersecções entre arte e política, e que os jurados desta Berlinale parecem ter personificado tão bem.
No primeiro dia do festival, Nyong’o afirmou ter ouvido muitas vezes que a Berlinale era um festival político, e que ainda não sabia o que isso queria dizer, mas que estava preparada para o desafio. Dez dias depois, ao final da noite de sábado no Berlinale Palast, parece que ficou claro que a atriz de origem queniana, agora radicada nos Estados Unidos, tinha entendido bem a função do seu papel. Ou, como diriam os seus vizinhos americanos, Lupita “understood the assignment”.
COMPETIÇÃO
- Urso de Ouro: Dahomey
- Grande Prémio do Júri: A Traveler’s Needs
- Prémio do Júri: L’Empire
- Melhor Realização: Nelson Carlos De Los Santos Arias (Pepe)
- Melhor Performance: Sebastian Stan (A Different Man)
- Melhor Performance Secundária: Emily Watson (Small Things Like These)
- Melhor Guião: Matthias Glasner (Sterben)
- Contribuição Artística: Martin Gschlacht (The Devil’s Bath)
ENCOUNTERS
- Melhor Filme: Direct Action
- Melhor Realização: Juliana Rojas (Cidade; Campo)
- Prémio Especial do Júri: Some Rain Must Fall e The Great Yawn of History
DOCUMENTÁRIOS
- Melhor Documentário: No Other Land
- Menção Especial: Direct Action
CURTAS-METRAGENS
- Urso de Ouro melhor curta: An Odd Turn
- Prémio do Júri (Urso de Prata): Remains of the Hot Day
- Menção Especial: That’s All From Me