O que fica de Berlim 2024? Experiências

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Numa edição que ficou marcada por polémicas e discussões políticas que quase tiraram os filmes dos holofotes, a competição de Berlim se destacou por muitos filmes medianos mas com uma série de “experiências”. O hipnotizante documentário comprado pela A24 “Architecton” sobre o uso do concreto no mundo moderno, ou um filme inclassificável sobre um hipopótamo que pertencia a Pablo Escobar encabeçam essa lista de improváveis mas possíveis ursos de ouro.

A edição do Festival de Berlim de 2024, que anuncia o seu palmarés hoje à noite, vai ficar marcada por uma série de contratempos e saias justas. Uma edição turbulenta que será lembrada especialmente pela despedida dos diretores Carlo Chatrian e Mariette Rissenbeek, que concluem sua jornada de cinco anos à frente do evento mas que deixam o posto com a sua imagem arranhada. Sob a sombra de várias críticas no que diz respeito à gestão do festival e de conflitos internos, a situação tornou-se insustentável quando o famigerado convite à políticos do partido de extrema direita AfD foi tornado público. 

Nos primeiros dias do festival, os filmes se tornaram objetos secundários dando lugar a violentas e inflamadas discussões políticas, numa edição que um artigo do New York Times declarava nunca ter visto “assim tão instável”. Foi preciso alguns dias para que os filmes começassem a emergir e quando isso aconteceu, finalmente encontraram seu espaço ao sol.

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Os melhores títulos do festival estavam quase todos espalhados pelas seções paralelas. Foi o caso do dilacerante e poderoso documentário “No Other Land”, filme de um coletivo Israelita-palestino que precisou de ter seguranças à porta em cada uma das suas exibições; o terno e melancólico “Crossing” sobre uma ex-professora tentando corrigir um erro do passado em Istanbul, ou o belíssimo e hilariante “Dormir de Olhos Abertos” uma produção entre o Brasil e Taiwan realizado por uma alemã, e produzido por Kléber Mendonça Filho, abordando a diáspora chinesa no Brasil enquanto vai explorando momentos de “lost in translation” na capital de Pernambuco.

A competição principal, como quase acontece todos os anos, revelou-se a seção mais fraca do festival, com filmes medianos ou de realizadores consagrados apresentando obras menos expressivas. Esse fenómeno é visto por muitos como um dos maiores problemas de Berlim, um festival que se orgulha de sua programação politicamente engajada. Contudo, essa tem sido uma das maiores críticas à curadoria do festival, que segundo muitos perdeu a capacidade de concorrer com Cannes e Veneza. Espera-se que Tricia Tuttle, a nova diretora artística que é americana, possa resolver essa questão ao assumir o seu posto na próxima edição.

No entanto, um denominador comum emergiu entre vários dos títulos desta edição. Esses filmes transgrediram as fronteiras tradicionais do que compreendemos por ser um filme, explorando novos caminhos, muitas vezes árduos e que por vezes testaram a paciência do espectador, mas ainda assim, proporcionaram alguma espécie de “experiência”.
Não estamos falando aqui de filmes que possam se encaixar em categorias de “bons” ou “maus”, mas sim de obras que refletem de alguma forma uma compreensão que vai além do estado atual do cinema.

Essas obras sugerem que um filme pode ser mais do que uma história contada através de imagens em sequência, expandindo a sua forma, e oferecendo novas perspectivas que se movem através da reinvenção estética e da sua função como expressão de significado.

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“Architecton” do realizador russo radicado em Berlim Victor Kossakovsky, e que foi estranhamente adquirida pela A24, é um grande exemplo disso. O filme é uma obra inclassificável situada entre o documentário, a vídeo arte e o manifesto político. Uma meditação épica que leva os espectadores a uma jornada extraordinária através do uso do concreto e da pedra como materiais fundamentais da nossa habitação. Uma intersecção entre arquitetura, história e humanidade, desafiando o espectador a refletir sobre o legado e o impacto ambiental do concreto na construção do mundo moderno, ao mesmo tempo que busca na arquitetura ancestral pistas para um futuro sustentável.

Kossakovsky se utiliza do projeto paisagístico do arquiteto italiano Michele De Lucchi para refletir sobre o surgimento e a queda das civilizações, capturando imagens impressionantes desde as ruínas do templo de Baalbek no Líbano até a recente destruição de cidades na Turquia causada por terremotos.

“Architecton” é um objeto de uma belíssima estranheza, que mesmo sem um narrador ou uma narrativa que organize a sua história, consegue guiar o espectador numa experiência atmosférica e hipnotizante e que é evidenciada pela cinematografia acachapante de Ben Bernhard e pela música atmosférica de Evgueni Galperine. Uma espécie de documentário que estabelece um diálogo visual sobre a permanência e a efemeridade das construções feitas por homens, mas sempre em contraste com a imutabilidade da natureza.

Outro exemplo dessas “experiências” e talvez o filme mais inclassificável de todo o festival, foi “Pepe” do dominicano Nelson Carlos De Los Santos Arias sobre um hipopótamo que realmente existiu e que um dia pertenceu a Pablo Escobar. O filme se baseia no que foi apelidado na época de ‘hipopótamos da cocaína’. Quando o chefe do narcotráfico colombiano Pablo Escobar foi morto em 1993, a maioria dos animais que ele havia importado morreram ou foram transferidos para zoológicos. Apenas quatro hipopótamos permaneceram nas terras de Escobar, um deles sendo Pepe.

O filme elabora então uma vida fictícia para Pepe, indo desde os seus antepassados até sua morte, marcando-o como o primeiro e último hipopótamo a ser morto nas Américas. O filme é uma espécie de não-ficção experimental que inventa uma narrativa rica em humor e ironia, e se utiliza de um hipopótamo multilíngue para explorar temas de deslocamento, identidade e a surreal realidade dos animais que sobrevivem após a morte dos seus capturadores humanos.

Apesar de sua premissa inventiva e intrigante, e da proeza técnica com o trabalho de câmera e som, ‘Pepe’ desafia o público com sua narrativa não convencional e quase inacessível. Por um lado admirável enquanto um curioso objeto cinematográfico, por outro um filme onde qualquer tipo de conexão com o espectador se faz praticamente impossível. O filme provocou reações extremadas de amor e ódio na Berlinale desde a sua estreia e é chamado por muitos como o “dark horse” desta edição.

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Para além disso, a edição de 2024 de Berlim trouxe outras experiências de intenso catarse emocional. Destacamos o fabuloso “La Cocina”, do mexicano Alonso Ruizpalacios, que se valeu de uma estrutura semelhante à dos filmes-mosaico, mas estilhaçando-a em inúmeras partes para dar vida a uma narrativa megalomaníaca e ambiciosa num épico sobre classe e imigração. Um filme que constantemente evita a perspectiva da vítima, infundindo vida e carga emocional numa série de personagens que habitam intensamente dentro de uma cozinha caótica em plena Times Square.

“La Cocina” é uma obra épica e que trouxe de volta à Berlim a efervescência típica de festival, a do filme que divide os críticos e causa todo tipo de debate. Um filme grandioso, pujante, com sequências impressionantes de tirar o fôlego e que permanece desde a sua estreia no terceiro dia do festival como o filme mais radiante e catártico do concurso até o momento.

E a catarse por meio de narrativas com múltiplos personagens também ganhou vida no destruidor filme do alemão Matthias Glasner, “Sterben” (Morrendo). Um épico familiar de três horas que tem sido apontado por muitos como um dos favoritos ao Urso de Ouro e que dividiu com o dinamarquês “Vogter” o posto dos filmes favoritos pela equipe de críticos organizada pelo Cinema Sétima Arte.

Dividido em capítulos, “Sterben” narra a história da família Lunies, marcada pela distância emocional e física entre seus membros. Lissy Lunies, uma senhora que enfrenta uma espécie de nova liberdade e solidão após o marido com Alzheimer ser internado em um lar de idosos. Seu filho, Tom, um maestro trabalhando em uma composição intitulada “Sterben”, enquanto lida com problemas pessoais, incluindo a depressão de seu melhor amigo, Bernard, e a irmã de Tom, Ellen, uma mulher que se envolve em uma aventura alcoólica com um dentista casado, personagem aliás com muitas semelhanças à de Claudia Wilson, imortalizada por Melora Walters em “Magnólia”, de Paul Thomas Anderson.

“Sterben” compartilha muitas semelhanças com o magnum opus americano de 1999. Ambos exploram a complexidade dos laços familiares e pessoais através de uma colagem de histórias interconectadas, oferecendo um olhar introspectivo sobre a morte e o desgaste emocional dentro de uma família, estabelecendo uma conexão profunda e universal sobre o isolamento e a busca por reconciliação.

Um festival repleto de “experiências” de todos os tipos, mas que só confirmaremos se teve algum impacto na escolha do júri, liderado pela atriz Lupita Nyong’o, daqui a algumas horas.

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