«Miss» – Quando falamos para multidões com linguagem da carochinha …

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*O texto que segue contém pormenores reveladores do enredo

Era uma vez … um menino que sonhava ser uma Miss. Mas não era uma Miss qualquer, era a de França. E não, ele não queria ser menina, apenas ter a mesma oportunidade que todas as outras meninas têm para concorrer em tal concurso. Só que o nosso menino que não se identifica como tal, nem muito menos como menina, entrou no dito concurso tentando ser aquilo que não era. Mas o seu percurso dentro de tal competição, cheio de regras e rivais, é lhe facilitado, porque sempre havia alguém que nunca a deixava(o) “tropeçar”, dando oportunidades atrás de oportunidades, muito devido à … como diríamos … condição, ocultada, mas presente, secretamente, para alguns responsáveis da Miss França.

Ainda mais, a narrativa desta história privilegiava o nosso menino(a). Ele(a) é órfão, teve uma efémera infância feliz com os seus pais que o incitaram a lutar pelos seus sonhos, mas isso lhe foi retirado enquanto muito novo. De seguida, é-lhe dado uma “espécie” de família de acolhimento, uma união multicultural de marginais sociais. Todo este elemento indica-nos desde o seu início que o nosso menino, o qual revelo chamar-se Alex, vencerá nesta fábula que vos conto. Longe de mim usar tal forma como condescendência para com o nosso protagonista ou do discurso que por vezes o filme explicita, mas o nosso realizador ou neste caso, o storyteller, assumiu que “Miss” foi disposto como se uma fábula tratasse. Uma lição de vida para ser lecionada.

Pois bem, é através dessa questão identitária extraída nos códigos de género que Rúben Alves, após ter saído do “Portugal dos pequeninos” no meramente simpático “A Gaiola Dourada” (2013), falha na sua dita locução. Se por um outro lado temos o debate subversivo sobre os limites do género numa sociedade ainda vincada por polos / facções, é no ato de entrega destas ideias que reside o maior problema. Toda a construção de Alex (interpretado pelo ator e modelo andrógeno Alexandre Wetter, sem dúvida alguma a grande força desta obra) segue num modelo de superação underdog, que como é hábito recorrente desse mesmo conceito, adquire uma tendência de “vitimismo” quase pornográfico, ferramenta de manipulação emocional. Depois segue o processo de ascensão dentro do universo das Misses …

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Ruben Alves especifica uma instituição obsoleta, incapaz de motivar gerações recentes e que desesperadamente procura a sua “next big thing”. Mas qual? Alex é, enquanto “rapariga disfarçada”, elevada e “protegida” dentro de um meio competitivo. A sua condição, até então desconhecida para os demais, funciona a seu favor e de forma privilegiada perante as outras concorrentes. Ou seja toda esta “igualdade” e imparcialidade no jogo são desleais.

Certamente, que há diferenças perceptíveis na dita igualdade e equidade, se a primeira equipara todos de maneira imparcial dando as iguais ferramentas e oportunidades, a segunda opera de forma devidamente justa para com os mais socialmente desfavorecidos, dando a alavanca necessária para os colocar no “pé de igual” com os outros. Ou seja, a equidade leva-nos à igualdade, e quando o primeiro ponto já não é mais necessário chegamos, por fim, ao segundo. No caso de “Miss” a falta de adaptação de Alex perante as regras do concurso (muitas delas não partem do seu género indiferenciado, mas da sua moralidade), é sempre desculpada com o seu passado trágico, perdoando as suas, diversas vezes, atitudes de rebeldia e, em certos momentos, de ingratidão, para que no final ser visível a razão para esse “percurso”. Alex é o requisitado “next big thing”.

Estes elementos narrativos não são novos no Cinema, porém, “Miss” foi concebido como um filme para massas, tentando com isto incentivar um debate envolto nestas questões. Para quem está familiarizado com os referidos territórios, ideias e experiências não será convencido ou exercitado a discuti-las. Para os “outros”, aqueles que não possui a sensibilidade ou perceção (que de facto não são poucos) sentirão ideologicamente repelidos perante um episódico Tootsie que na verdade é apresentado como um “coitado”.

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Apela-se para que se desvie esse rótulo de “coitadinhos” na causa, cada vez mais inserido nos falatórios da extrema-direita. A solução (que não é simples) resulta na normalização e sobretudo expor a existência daqueles que não se identificam ou enquadram nos parâmetros binários “socialmente aceites”. Podem ser diferentes (palavra que, confesso, não gosto que seja empregue nestes casos) só que estão longe de serem … isso mesmo … Coitados.

Fora isso, “Miss” é um mero produto “popluxo”, com demasiadas purpurinas, mensagens motivacionais, música pop que toma de assalto as ações, o previsivelmente esperado neste tipo de produções. Ruben Alves tem, para além de Alexandre Wetter, outro golpe de “génio”, uma paralelização evidente e prestada ao tributo de um dos subgéneros mais propícios do feel good movie e do underdog – o Boxe. Nesse aspeto, tal como confidenciou-me, “Miss” foi criado como uma espécie de Rocky em passerelle.

«Miss» – Quando falamos para multidões com linguagem da carochinha …
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