Nada de mal acontece até que realmente aconteça. Sem aviso. A parábola não engana, porque é clara: não se mexa com o que o que está, ou o mal virá a quem disrompe e desinquieta. Mas essas são só palavras. A parábola é primeiramente ecológica: a água que corre fá-lo limpidamente e calmamente porque é deixada correr, por si só e enquanto só. Quanto mais, ela é gentilmente retirada e levantada por uma colher, enquanto é deixada continuar. Se a água corrente é essa imagem da quietude (tensa) que perpassa o filme, na sua referenciação enquanto o estado biológico não defraudado – ela é serenamente impoluída e respeitada pelos habitantes que dela também vivem – então os ramos das árvores, vistos de baixo para cima, são a cúpula que permite enunciar a interrogação do filme: se o mal não está aqui, quando é que ele poderá chegar?
Ao percorrer longamente um trilho que não se vê, mas sim um céu que é emaranhado pela conjunção das linhas distorcidas das ramificações, a espera de um fim do movimento (um início) não é o que mais importa – o respirar final, dar-lhe-á um outro sentido narrativo – é sim o facto de ser ele um clamor contido, um de busca de uma razão previamente respondedora pelo final que há-de vir e o fazer repetir novamente, como um início-fim, feito de um mal acontecido, num mesmo caminho e num mesmo travelling, forma parabólica outra do próprio filme. Assim o é: um travelling que espera pelo mal, o travelling que o anuncia e, por fim, o travelling que lhe carrega o resultado. No meio, antes dele e após ele: a tensão, ela que é a figura primordial do filme, já que o atravessa – saindo desse primeiro travelling – e o anima com uma estranha calma, aquela que tão propriamente sossega e que tão claramente se aguarda que possa a qualquer momento se auto-destruir em violência. E ninguém corporiza mais a tensão do que Takumi (Hitoshi Omika). Silencioso e calado, é na ação forte (e contrária à sua aparência e modo de ser) que efetiva a impossibilidade de falar para além do espelho opaco de uma dor que não exterioriza, nela e com ela marcado, e que o remete a um passado traumático a que o filme não alude – a perda da mulher, nunca falada ou referida enquanto a razão de um mal-estar auto-somativo e tão silencioso quanto ele próprio – e isso é claramente visível no modo como desfere os golpes nos troncos, para os destroçar: golpe alto e retumbante e deslizamento suave no fim, energia lançada e contida, em momentos sucessivos e que são difíceis de diferenciar. Onde fica a linha expectável? Onde a esperar? Onde ele a encontrará? A ironia dessa sua calma é a explosão num dado momento que ainda não se vê, mas que virá depois. Os outros parecem sempre mais nervosos, mais tensos, mas é ele que a carrega, a tensão que se materializará numa violência não esperada.
Não é só Takumi que é expressão (não expressa) da tensão. Maior é a tensão enquanto tema ecobiológico: a localidade/área onde Takumi e a sua filha Hana (Ryô Nishikawa) vivem é um espaço rural e florestal que, não sendo distante de Tóquio (duas a três horas de carro) é, no entanto, manifestamente trabalhado para ser impoluído e equilibrado. Quando os funcionários da agência de talentos (!?) Takahashi (Ryûji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani) chegam para reunir com os aldeões, é toda uma impossibilidade de comunicação que se estabelece entre os que estão ali para, no mínimo, induzir ao engano e os que estão para se não deixarem enganar. Tensão óbvia, numa longa cena de deposição, argumento e contra-argumento, e onde fica claro que os habitantes não se deixarão encaminhar para uma situação que lhes vai poluir e destruir a pureza do seu entorno. Feitos regressar pelo pouco escrupuloso patrão (entrado agora na indústria de subcontratação e absorção de subsídios estatais pós-pandemia), Takahashi e Mayuzumi, conversando na sua segunda viagem de carro, demonstram igualmente a tensão da insatisfação com o rumo das suas vidas e, sobretudo, com um emprego que os obriga ao engano e ao aproveitamento daquilo que é um bem de outros. Chegados até junto de Takumi com o propósito – comandado pelo seu patrão – de o ludibriar com presentes e o lugar de encarregado do parque de glamping (nome estranho para uma ainda mais estranha, porque “inovadora”, sub-atividade de índole turística), depressa são feitos abandonar a máscara, perante a clareza de um homem (tenso, é certo, mas firme), que não poupa, com as palavras certas, no dizer e afirmar de que a armadilha que os outros vêm armar, não será através dele que será armada.
O que a parte final do filme evidencia é um tema que é o corolário de todos os outros – é tenso, configura-se como uma luta e manifesta uma impossível comunicação – e que é o da pureza/impureza: a impureza dos que vêm de mau fito (não verdadeiro, já de dele desistem rapidamente, dada a pureza de Takumi) é rechaçada pela própria pureza-candura dos que os recebem (a comunidade-aldeia é uma força de uma grande clareza de propósitos, ideais e formas de cultivar a terra e o trabalho sobre ela); o impuro do tiro que aloja uma bala no corpo de um cervo fêmea é negado pela calma de uma Hana que só a quer confortar (e o animal sempre a atacará, na dor de um corpo que só quer sobreviver); a impureza de tudo o que com eles vem (carros comerciais, vídeo-chamadas, fossas sépticas) é negada pela pureza de um nevoeiro que baixa sobre tudo o mais, ele que é límpido porque é um véu que definirá um palco da inesperada violência.
Quando irrompe, ela surge como um choque, com certeza. A tensão haveria sempre de quebrar. Mas ali, no meio de um campo aberto, uma clareira-nevoeiro, ela é uma disrupção que não se esperava, é um assalto sobre um corpo, uma dúvida sobre o que que fica, uma morte no chão ou uma sobrevivência de um novo respiro. O travelling que regressa não nos elucida afinal, deu sentido narrativo ao inicial, mas não nos respondeu à questão final. Ficou tão somente o que foi um ato verdadeiramente violento. A natureza das coisas, dos animais, e dos homens, essa não perdoa, nelas o que acontece, simplesmente acontece. Acontecido, já nelas ele, o mal, ficou. Talvez seja sobre isso que Ryusuke Hamaguchi fala: a importância de não se deixar chegar tão longe a tensão humana e ecológica. Que não vá ela se tornar numa violência que não se quer.