Numa época em que os filmes inundam o cinema e os espectadores de frames rápidos, cortes e milhares de planos, sabe bem deixar os olhos respirarem. Sentimental é um filme que seduz com palavras, que cresce pelas palavras e que nos prende pelas palavras, e claro, pela excepcional performance dos actores. Um filme com muito humor, sarcasmo e seriedade em torno da complexidade das relações humanas, dos tabus e da curiosidade sobre os nossos semelhantes. Sentimental ou “The People Upstairs” é a adaptação de uma peça do próprio Cesc Gay. Uma comédia que estreou em San Sebastian, em 2020, e que já ganhou vários prémios em festivais em Espanha. Atrasada pela pandemia, chega agora ao circuito internacional.
Julio (Javier Cámara), um professor de meia-idade snob, amargurado pela vida, num casamento com Ana (Griselda Siciliani) em crise cega, surda e muda há vários anos. Sem sexo, sem toque. Uma filha. O sarcasmo e um humor passivo-agressivo mascaram os seus verdadeiros sentimentos. Quando Ana convida os “barulhentos” vizinhos do andar de cima: Salva (Alberto San Juan), bombeiro e Laura (Belén Cuesta), psicóloga, para jantar, as coisas saem de qualquer plano pré pensado e espoletam vários ramos da história pessoal, conjugal e colectiva dos intervenientes.
A conversa fica cada vez mais intensa à medida que os dois casais começam a abrir-se e, à medida que a noite avança, uma oferta inusitada força as diferentes personalidades de Julio e Ana a emergir. Eles discutem, com frequência, sobre o conhecimento de que as pessoas próximas (os vizinhos) têm uma vida sexual alegre e sem culpa, algo que apenas exacerba a falta de amor no seu próprio relacionamento. À medida que a noite continua, mais vinho é consumido e mais verdades são reveladas.
Com apenas 82 minutos, no tempo perfeito, sem esticar demais nem encurtar demais, o argumento de Cesc Gay é quase impecável e consegue apresentar esse cenário inusitado de forma espirituosa e inteligente. Surpreendentemente franco e directo na forma como fala das barreiras que existem ao discutir abordagens não convencionais ao sexo e ao tédio que afecta as relações de longo prazo. As actuações do quarteto são perfeitas e o cenário burguês (classe-média), também é importante, proporcionando um belo cenário para a acção quando pensamos nos problemas materiais do quotidiano que os afectam.
A necessidade de nos abrirmos para os outros e a riqueza da nossa imaginação, pode levar-nos a conclusões erradas quando nos precipitamos em julgamentos. Cesc Gay, mais uma vez, demonstra a sua maestria na direção de atores, tudo pensado desde a entonação das vozes e olhares, gestos, sorrisos, piscadelas e indubitável habilidade de dar a cada palavra, a cada frase, cada respiração o seu pleno significado. Com alguma atenção percebemos que os actores, mesmo que não em plano principal, mantêm um performance atenta. À semelhança de um palco de teatro, sentados no cinema, sentimo-nos como numa plateia – a quarta parede. Um cenário único aprisiona a história e confina os seus personagens. Colocado bem no centro da história está o enigma do relacionamento sobre o qual quase todos, de Orson Welles a Woody Allen, quiseram tocar, ou seja, que os casais em guerra podem discutir e gritar um com o outro até que os seus rostos fiquem azuis de raiva, mas quando confrontados com a perspectiva de dissolução real, algo mais profundo é accionado.
Torna-se difícil falar mais sobre o filme sem oferecer spoilers. Resta-me apenas recomendá-lo vivamente!