“Taxi Driver” – O cinema como sonho e imaginação

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O expressionismo sensualista de “Taxi Driver” possui um conteúdo narcotizante, que não deixa de suscitar uma certa estranheza.  A melodia composta por Bernard Herrmann, que atravessa todo o filme, possui uma indelével dualidade capaz de nos guiar desde um deambular sereno pelas ruas de Nova Iorque até às profundezas obscuras da mente de Travis Bickle (Robert De Niro). A música nunca aparece como complemento da imagem, mas como elemento que marcha ao seu lado. Os dois elementos estéticos entrelaçam-se como duas cobras que acasalam e transpiram para a forma fílmica os movimentos interiores que vivificam todo o filme.

Travis Bickle é um ex-militar que procura na condução de um táxi não um mero trabalho, mas uma actividade nocturna que o ajude a combater as suas insónias. Mas não é apenas contra as insónias que Travis luta, a maior de todas as batalhas é aquela que trava contra si mesmo. São os seus conflitos interiores que energizam a sua subjectividade e fazem da sua alma um campo de batalha – ideia bem dostoievskiana. Travis é uma personagem que brota do subsolo, e que nos vai revelando, através do seu diário, pensamentos vindos do seu mundo subterrâneo.

Na errância deste flâneur nocturno existe uma impossibilidade de inscrição no mundo, que o vai empurrando para o doce refúgio da sua moral. Travis vai acumulando conexões frustradas, que o fazem cair, cada vez mais fundo, no seu conservadorismo. Na sua tentativa de criar uma ligação com Betsy (Cybill Shepherd) – que trabalha para a campanha do candidato democrata à presidência, Charles Palantine (Leonard Harris) – reside o seu momento mais decisivo. A sua abordagem a Betsy revela esta duplicidade que o habita: se, por um lado há um inusitado excesso de confiança de quem se vê como legítimo macho alfa; por outro, existe a inocência e o ímpeto puro da paixão que o move.

Travis – como todo o ser humano – é animado por uma misteriosa sede metafísica, mas acaba por se deixar embriagar por uma noção narcotizante de justiça, vinda do fundo do seu conservadorismo. Algo que o limita a falar das limpezas que estão por fazer nas ruas, mas nunca sobre aquelas que ficaram por fazer dentro de si.

Ao mesmo tempo que vemos, nas cenas finais, o culminar dessa violência que estava contida na personagem, vemos a forma soberba que Scorsese lhe imprime – e compreendemos também o porquê de Ingmar Bergman se ter referido ao filme como tendo “retratado a violência no mais elevado nível artístico”. São várias as reflexões que podem ser feitas a partir desta ideia, que remete naturalmente para uma famosa ideia de Jean-Luc Godard, que encaixa perfeitamente na especificidade do tom narrativo e visual de “Taxi Driver”: “Não é sangue, é vermelho. O que se vê num ecrã não é sangue, é uma cor. Uma espécie de pintura. Não é real nem verdade”. Se o filme de Scorsese mereceu tal epíteto de Bergman é por conseguir mostrar claramente como a linguagem cinematográfica é capaz de sublimar o real, ao transformá-lo em signos, formas e cores que nos activam a imaginação. Mesmo no momento mais violento do filme, os pilares estéticos continuam a ser os gestos de Travis, desde a cena onde Travis fala para o espelho até à mão ensanguentada, em forma de arma, que ele aponta e dispara para a sua própria cabeça. Constatamos como o poder do cinema reside nesse entrelaçamento perfeito entre o real e a ficção, entre a documentação e a estetização, entre a nossa capacidade de discernirmos a lógica narrativa e a intensificação da nossa capacidade de imaginação, tudo isto a partir de uma mesma imagem – que, na verdade, nunca é a mesma.

“Taxi Driver” é uma maravilha da sétima arte. Pela forma como revela este poder específico do meio cinematográfico, ao representar as realidades mais violentas sem cair na imagem crua e facilmente impactante. Porque os filmes mais belos são aqueles que nos deixam sempre com aquele estranho e especial sabor de termos vivido – ainda que por breves momentos – dentro de um sonho.

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“Taxi Driver” – O cinema como sonho e imaginação
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