“The Card Counter – O Jogador”, a mais recente incursão de Paul Schrader na realização, estreou nas salas de cinema portuguesas no passado dia 18 de Novembro.
Ainda está presente na memória de muitos o inesperado sucesso comercial de “No Coração da Escuridão”, filme de 2017 que trouxe a Schrader a sua primeira nomeação aos Óscares, por muito surpreendente que isso seja para um veterano como ele.
Ali, a temática da obsessiva busca pela salvação da alma ressurgia de forma quase fantástica, surrealista, mas sem perder de vista as questões principais que movem Schrader e que se enraízam, muitas vezes, na sua educação profundamente religiosa.
“The Card Counter – O Jogador” é o aprimoramento estético despojado de “No Coração da Escuridão”, mais limpo, menos barroco, mais contido e em perfeito controlo da sua narrativa – parece até demasiado perfeito.
Mudam-se os protagonistas, remove-se o bizarro para que reste o silêncio, e perde-se uma quantidade incrível de tempo (no bom sentido) a contar a história de um homem que se dá pelo nome de William Tell, o alter ego do ex-soldado William Tillich (Oscar Isaac).
Não desaparecem os santuários, não desaparece deus, em “The Card Counter – O Jogador” Deus não morreu, apenas se apresenta sob a forma de mesa de jogo, de torneios de cartas, o altar do capitalismo onde os solitários deambulam pelos corredores a expiar pecados concretos.
A solidão dos torneios é cortante, sente-se na pele nas belíssimas cenas de conjunto, focadas nos hábitos dos jogadores, na rotina, nos gestos de quando se sentam às mesas, no modo frio como parecem conhecer-se todos, mas é apenas um trabalho como tantos outros.
O jogo em “The Card Counter – O Jogador” é um pretexto, uma desculpa, uma capa atrás da qual Tell se esconde, onde oculta os não resolvidos traumas da guerra, do Iraque, de onde saiu veterano e condenado (no corpo e no espírito).
Dividido entre o sagrado e o profano, Tell, que Isaac encarna numa deslumbrante perfeição de estilo e de respirar do personagem, é uma mistura entre herói lendário libertador e rebelde e o estratega táctico irrepreensível que nunca revela um pensamento.
William é Tell, mas também é Tillich, por isso quando atira à maçã com a sua mira infalível, trata-se simbolicamente de um pecado mortal ou uma libertação? O modo como Schrader constrói esta complexa teia de ideias contrasta com a simplicidade e ascetismo da maioria dos cenários, ainda estamos afinal no campo da salvação da alma.
Tell conta cartas, conta o tempo, a vida vai passando, mas é uma vida cinzenta, desde a indumentária ao tom de voz, passando pelos desejos e expectativas. Não será antes contar a vida e passar as cartas? As fronteiras de Tell tornam-se difusas com facilidade.
“The Card Counter – O Jogador” é uma ficção dentro da ficção para a qual todos os personagens principais parecem ter criado outros personagens. Simbolicamente, a tríade Tell, La Linda (Tiffany Haddish) e Cirk (Tye Sheridan) encontram-se nos corredores dos jogos de cartas e reconhecem-se de imediato, ligam-se, talvez partilhem a mesma necessidade de criação a partir do barro primordial.
Tell é William, o Guilherme da lenda medieval, Linda é “La” Linda, aglomeradora de jogadores, e Cirk é Kirk com “C”, cada um adicionando à história daquele encontro a sua parte de irrealismo simbólico.
Na fímbria da normalidade e contenção que é “The Card Counter – O Jogador”, surgem vários destes sinais de alarme, trombetas que anunciam a perspectiva de a compostura, a dedicação, o fervor poderem transformar-se em caos e loucura – um regresso ao passado recente de pecados da carne.
Um jogador, quase sempre vencedor, vestido com as cores e símbolo da bandeira norte-americana da cabeça aos pés, percorre até às mesas de jogo o seu caminho de falso profeta, rodeado de uma legião de fãs que grita “USA, USA!”.
Alguém menciona, entredentes, no filme: é estrangeiro, nem nasceu em solo americano. Avizinha-se mais uma fenda no tecido da perfeição, a janela para uma América de contrastes, falsa, cínica, escondida sob o manto das oportunidades e o crescimento sem fim.
As imagens de tortura de Abu Ghraib também parecem falsas, encenadas, exageradas, de cores saturadas, em claro contraste com o presente cinzento e deslavado de Tell, a tentar esconder a explosão do passado na rotina e na previsibilidade.
O cenário mudou desde “No Coração da Escuridão”, mas basta olhar para o quarto de motel imaculado de Tell para de algum modo se seja transportado para uma forma de vida muito próxima do ascetismo monástico.
Não só o quarto, toda a rotina, a roupa, o discurso, não se encontram assim tão afastados da religiosidade ou a pia tentativa de limpar a alma dos pecados do passado, tema que perpassa, aliás, o trabalho de Schrader com frequência, apesar das mudanças de cenário.
Para Tell, pequenos momentos de tentação são suficientes para aguçar a curiosidade, para atiçar o pecado, para seguir sem pejo o até então impensado projecto de vingança física.
“The Card Counter – O Jogador” usa os jogos de cartas como pretexto para valores mais altos, embora as apostas sejam baixas. O apagamento do desejo em nome da expiação dos pecados rapidamente dá lugar a uma intempérie de força vital.
O que une os seus protagonistas é a motivação de não estar só, é deixar que o tempo passe sem que se dê o verdadeiro confronto com a consciência, com o que ficou por resolver.
William Tell aprendeu a contar cartas na prisão, é assim que é dado a conhecer ao espectador, arte na qual se torna particularmente bom e lhe permite sobreviver confortavelmente na vida real.
Contar cartas na vida real não é propriamente aceitável e no contexto do jogo não é legal, mas quem sabe o que vai na cabeça do jogador? Esse um dos grandes mistérios quer do jogo quer das motivações dos jogadores e aquele que dá o verdadeiro mote para o que se desenrola a partir daí.
Se “The Card Counter – O Jogador” parece simples é porque é um enorme truque de luz ou de cartas, se assim se quiser. Se Schrader optou por um esquema formal clássico e contido, terá sido para enganar o espectador quando não este não estivesse a olhar com atenção.
“The Card Counter – O Jogador” é tremendamente contido e tenso, escrito com mestria, com tempo, quase um “Jackie Brown” com protagonista masculino e branco, sem graça aparente. Ao invés da magia e do choque, opta pelo ocultar as suas intenções sob um manto de calmaria.
Por debaixo, é só fogo e luz, cor e febre, mas é preciso estar-se disposto a levantar o véu, a confrontar o medo, a arriscar uma vida pela outra, a trocar os papéis, num eterno movimento de criação e destruição.
“The Card Counter – O Jogador” não termina aqui, transborda para lá do cinema, da película, e não tem preço o espanto que causa quando finalmente se percebe o enorme e maravilhoso engano em que enovela a quem o assiste.
Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico