Os domínios e os limites da mente e as expansões do corpo são bem a temática deste Um Método Perigoso, estória e registo de uma luta entre polos opostos desse meta-ato – e meta-metodologia – que é o da criação de imagens. Ao fazer agrupar e lutar duas mentes (e ainda mais uma) da mais pura inclinação criativa, David Cronenberg reflete sobre o modo como a feitura do conhecimento – e aí sobretudo um conhecimento acerca do humano – é sempre um macro-método de imaginação e ficção imagética – bem por sinal, os sonhos tomam um papel preponderante no micro-método científico praticado ao longo do filme – que permite ver imagens primeiro e imagificá-las depois.
Ao olharem para a imagem física, e mais ainda, para a imagem sonora daqueles que observam, tanto Carl Jung (Michael Fassbender) como Sigmund Freud (Viggo Mortensen) assumem uma postura de recriação imaginativa (e imagética), com um fim interpretativo, das imagens desconexas que perfazem as narrativas não lineares dos seus sujeitos de estudo. O ato de construção interpretativa e analítica que Jung e Freud levam a cabo – e por mais empírico e observacional que seja na sua formulação científica – é um método de indagação imagética acerca de como a mente é, de quais são os limites da sua estrutura imaginativa, o que sempre implica a sua materialização numa ação de especulação (de imagens acerca de) que decorre do processo sinuoso de associações-imagens dadas e que são o mapa inavegável, mas necessariamente a navegar que é o campo mental.
Na cena em que Jung entrevista a sua mulher, Emma Jung (Sarah Gadon), pedindo-lhe respostas imediatas a palavras por si lançadas, o que é encenado – nas máquinas científicas e na máquina-montagem – é o elo de imagens mentais que o cérebro produz a partir das palavras-imagem que recebe e que faz corresponder com imagens-palavra. E quando, logo após a saída de Emma, Jung pede algumas considerações preliminares a Sabina Spielrein (Keira Knightley) acerca das respostas (imagens) obtidas, ela efabula a sua própria analítica imagética sobre os resultados obtidos e recria uma imagem psicológica (psicoanalítica) sobre Emma. Mais ainda, cria uma outra e segunda imagem por força e ato de imaginação analítica: pergunta a Jung se a mulher entrevistada é a sua esposa (o que ela não sabia previamente). Da resposta positiva de Jung fica claro que o ato analítico fundado na imaginação – fazer imagens de – é o método científico, obviamente dúbio e falível em si, sobre o qual se baseia a psicanálise, enquanto estudo imaginativo e por imagens, do que é ser-se, dúbia e falivelmente, humano. É isso também que Cronenberg quer deixar bem claro, que esse método é em muito igual à criação das imagens do humano que o cinema constrói: especulações acerca de como nos comportamos enquanto agentes sociais. Se cada filme-ficção é sobre esse especular, então cada cineasta é um criador sempre engajado nesse mesmo ato de analítica imaginativa – sempre tão certeira quanto sempre tão errada – acerca da condição (imaginativa, desejante, material e corporal) do ser-se humano.
Mas o ato criativo-analítico de Freud e Jung é um de choque também, no que toca ao papel do corpo na materialização e satisfação das imagens latentes na mente. Freud associa a repressão do desejo corporal à criação de imagens neuróticas, sobre as quais teoriza (imagifica), enquanto que Jung efetivamente cria imagens reais dos atos consumadores do desejo, em função do seu uso do corpo. A relação que estabelece com Sabina é tão mais uma de atração dos corpos quanto é um estudo clínico das ações do uso corporal. A imagética da envolvência entre os corpos, os masoquismos e os batimentos, os prazeres das dores, são igualmente momentos de análise. A ação e o posterior distanciamento em relação a ela, para efeito da sua efetivação empírica, manifesta-se na postura clínica e observacional com que ambos – mais Jung, por certo – se equipam. A própria câmara de Cronenberg tende a adoptar um mesmo posicionamento relativamente afastado, de modo a tomar um lugar de observação em relação aos atos. Essa mesma postura de encenação, feita de leveza e aproximação contida à ação, oferece o necessário contraponto ao método dito perigoso do título: se a temática alude ao que seria uma nova formulação do pensar sobre o mais recôndito do humano, a visualidade de Cronenberg é uma que se pode designar de um método calmo, tal é contida e fluida a sua forma de colocar a câmara em relação à ação. Aliás, a mesma lógica se põe entre o método dessas personagens – apesar de perigoso no escalpelizar dos costumes, ele é também calmo na sua postura de observação para imaginação e imagificação – e o método/modo de encenação: é a mesma forma de um clínico (imagético) enquanto um necessário recuo perante o que é observado.
Mas não deixa de ocorrer uma aproximação à conversação – método de estudo e método de filmagem – e um tomar parte igual, pela câmara, numa encenação que se pretende neutral, de dois pontos de vista, dois olhares e duas grandes imagens: as perguntas-respostas da analítica mútua, ainda que disfarçada, que perfazem as conversas entre Freud e Jung, são tomadas pela câmara num modo também bem analítico e escalpelizador, ainda que nunca pendendo para nenhum dos lados, pela sua calma postura e equilíbrio perante as duas figuras. A luta entre duas mentes criativas e o claro choque entre visões antagónicas acerca de uma mesma disciplina e dos seus limites epistemológicos é marcada por uma sequência que condensa e agrupa as 13 horas da primeira conversa entre os dois e que engloba as cenas do almoço na casa de Freud, o lanche num café e os dois debates no seu escritório e consultório. Entre os planos conjunto a dois e a variação entre plano aproximado de peito e o grande plano quando separados por algum espaço entre eles, o choque calmo dos seus olhares e das suas palavras são sempre captados pela câmara de um modo equidistante – uma posição, um plano, uma contraposição, um contra-plano – na sua calma mas incisiva forma de deixar expressa essa diferença de imagens que ambos têm acerca da psique humana e do humano em si.
Do mesmo modo, ao longo de todo o filme, esse plácido da encenação, a calma da calma, sempre acompanha a grande conversação que é este Um Método Perigoso, um que é acerca das imagens e das palavras das imagens que se fazem acerca do que é sentir, o desejar e o praticar do desejo humano.
© 2021 Luís Miguel Martins Miranda