Na cena inicial de “Vidas Duplas” (2018), um escritor, que procura saber se o seu manuscrito irá ser publicado, discute com o seu editor sobre o estado da literatura e da crescente influência que as redes sociais, em especial o Twitter, têm no mundo literário. O filme estreou em 2018 no Festival Internacional de Cinema de Veneza e foi realizado pelo realizador francês Olivier Assayas.
Lèonard é um não muito popular escritor que baseia todos os seus livros nos seus casamentos e romances extraconjugais falhados. Alain é o editor de uma conceituada editora com mais de cem anos que procura soluções para se adaptar à progressão do mercado para o digital. Enquanto editor e amigo de Lèonard, este encontra algumas dificuldades em dizer-lhe que o seu manuscrito não será publicado devido ao desinteresse por parte do público na sua obra, que se reflete nas vendas bastantes baixas dos seus livros.
O entrelaçar da trama desenvolve-se quando percebemos que Lèonard tem um caso com a mulher de Alain, Selena (interpretada por Juliette Binoche), ao mesmo tempo que Alain mantém um caso com a nova responsável pela transição da editora para o mundo digital. Mas tudo isto não parece ser o foco do filme, pois estas revelações pouco ou nenhum efeito dramático têm na vida das personagens.
“Vidas Duplas” é um filme que procura explorar a contemporaneidade. Apesar da discussão não ser propriamente uma novidade para os dias de hoje, Assayas, através de extensos diálogos “filosófico-culturais”, discute o impacto que a internet e o mundo digital têm no mundo e, mais especificamente, na forma como as pessoas consomem literatura. Todavia, o filme, que retrata um mundo moderno, fazendo referências diretas ao Twitter, ao Facebook e aos ebooks, foi, paradoxalmente, filmado em película 16 mm, talvez como provocação por parte do realizador.
As reações das personagens, ao saberem das traições, são bastante contidas e pouco melodramáticas, pelo que podemos ver que o foco do filme não é exclusivamente a densidade dramática da narrativa. Em todo o caso, é construído através de inúmeros diálogos que se passam em serões com amigos, ou num qualquer café ou bar parisiense, dos quais se destacam alguns momentos cómicos. Por exemplo, o momento em que Selena menciona o facto de o livro de Lèonard se chamar “Ponto Final” e como seria engraçado que, por ter esse título, esse fosse o último livro do escritor, à semelhança de Thomas Bernhard que escreveu um livro intitulado “Extinção” e depois morreu. Mais adiante, por exemplo, o momento em que a actriz Juliette Binoche é sugerida como a voz ideal para a versão áudio do livro de Lèonard, ao que Selena (Juliette Binoche), que tem o email pessoal de Juliette, recusa dá-lo por ser uma questão “delicada” e aceita apenas passar o contacto da sua agente.
“Vidas Duplas” é um filme que, ao mesmo tempo que brinca com referências literárias e com o conceito de autoficção, joga com a própria ideia de cinema e do que se pode construir apenas com base num forte e divertido conjunto de diálogos.