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A Filha Perdida – Os dias de abandono de Maggie Gyllenhaal

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THE LOST DAUGHTER: OLIVIA COLMAN as LEDA. CR: YANNIS DRAKOULIDIS/NETFLIX © 2021.

No romance mais conhecido de Elena Ferrante fora de Itália, e o segundo da sua celebrada bibliografia, Dias de Abandono, somos apresentados ao que viria ser o prenúncio de um dos temas mais visitados pela escritora nos seus livros seguintes, o da “maternidade não-natural”. O romance que chocou o público italiano na época do seu lançamento, é um devastador relato sobre uma mulher a lidar com o vazio de uma solidão desesperadora após ser abandonada pelo marido por uma mulher vinte anos mais jovem. Para além disso, a protagonista se vê tendo de criar sozinha duas crianças com as quais não consegue estabelecer qualquer laço maternal.
Maggie Gyllenhaal, também mãe de dois filhos e que ficou arrasada após a sua leitura, conta que foi este o romance que primeiro quis adaptar. Mas as negociações encontraram alguns empecilhos pelo meio e não foram adiante. Primeiro porque uma versão italiana de 2005 já havia sido adaptada, sem muito sucesso, e depois uma outra versão, já essa em inglês andava empatada num imbróglio de estúdio envolvendo a atriz Natalie Portman. Mas quando a atriz desistiu do projeto de repente, a produção da HBO acabou por ser engavetada.

Foi então que um outro romance de Ferrante finalmente caiu nas mãos de Gyllenhaal. E aqui chegamos a A Filha Perdida, o romance de 2008 que pode ser visto quase como uma continuação do seu Dias de Abandono, onde Ferrante desenvolve com mais nuance o tema da maternidade em desgraça e onde rejeita os mitos religiosos que são impostos sobre as mães. Maggie então escreveu à escritora a lhe pedir os direitos, e Ferrante, que é fã da atriz, não só cedeu liberdade total para que ela fizesse a adaptação que bem quisesse, como disse isso numa carta aberta publicada no britânico The Guardian. Nascia assim então a belíssima estreia da atriz americana por detrás das câmaras e dava-se início a um dos projetos mais interessantes do cinema independente americano atual. 

No filme, Olivia Colman em completo controle da sua versatilidade, dá vida a Leda, uma talentosa acadêmica e professora de literatura comparada que vai de férias numa ilha grega da qual não sabemos o nome, mas que tem seus planos de férias paradisíacas interrompidos quando uma grande e barulhenta família americana invade a idílica praia onde Leda desfruta calmamente da companhia dos seus livros.
Um certo dia na praia, a matriarca da família Callie (Dagmara Dominczyk, brilhante depois do seu papel como a secretária de Brian Cox em Succession), pede que ela mova sua cadeira para um outro canto da praia para que a sua família possa estar toda reunida no mesmo espaço. Mas quando Leda se recusa a sair de onde está, um momento tenso entre ela e o restante do clã se instala e tudo a partir daí se transforma. “Eles são pessoas más”, avisa o empregado do resort, Will (o irlândes Paul Mescal, fazendo sua estreia no cinema) após presenciar a cena, e esse momento é o ponto de partida de um jogo de tensões ao qual Gyllenhaal vai desenvolvendo lentamente num intenso jogo de sugestão e desejos.

Leda silenciosamente observa a família de sua cadeira de praia e se mostra especialmente interessada pela dinâmica entre Nina (Dakota Johnson) e sua filha, Elena. O fascínio de Leda por Nina é indecifrável, mas as duas estabelecem um contato à distância, em forma de constantes trocas de olhares, quase como se tivessem uma linguagem codificada entre elas. Esse interesse por Nina é revelado mais adiante, quando Leda retorna ao próprio passado, desencadeando memórias do tempo em que Leda era uma jovem mãe (Jessie Buckley) décadas atrás.

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A tensão que se desenvolve entre Leda e a família de Nina se complica quando é revelado que a boneca de Elena, que havia sumido dias atrás, fora roubada por Leda. A professora se agarra à boneca, como se quisesse se redimir de uma maternidade interrompida – e da qual não houve escape possível, e mesmo que Leda possa não compreender as razões por que o faz, a intervenção funciona como que um ato emancipatório, sobre uma mulher finalmente concedendo a si própria o direito de sentir e de existir.

O tormentos de Leda são explicados por meio de flashbacks que tem por tarefa não só explicar o presente, mas também de situar os espaços. São talvez os momentos menos pujantes do filme, tornando tudo o que é ambíguo e arbitrário em algo esmiuçado, dramatizado e demasiado
 explicado.
Mas quando Gyllenhaal está no controle da sua narrativa, transportando em imagens todos os temas desconfortáveis e dilacerantes da “maternidade imposta” do material de origem, ela causa uma ótima impressão na sua estreia como realizadora.
Gyllenhaal faz do seu A Filha Perdida um filme calibrado em memórias perturbadoras, onde o remorso expõe um sentido de fragilidade que se revela um tanto desorientador. E mais do que um retrato íntimo das estruturas rígidas da maternidade, o filme é a realização dolorosa e complexa sobre as contradições, ambiguidades e consequências do amor.

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A Filha Perdida – Os dias de abandono de Maggie Gyllenhaal
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